Midiatização e Discurso

possibilidades dialéticas para investigação do objeto comunicacional

  • Ivan Vasconcelos Figueiredo UFSJ

Resumo

  


O presente estudo investiga as interfaces dialéticas[1] entre os conceitos de “midiatização” e “discurso”, a fim de identificar e problematizar as consonâncias e dissonâncias entre essas perspectivas. Para tanto, utiliza-se a metodologia de Silva (2010) para explorar os campos por meio dos movimentos: (I) “estranhar”: deslocamento do lugar de fala do pesquisador, em paralelo com a desfragmentação de pré-conceitos para constituir um olhar mais integral sobre o objeto comunicacional; (II) “entranhar”: entrada em outros campos de estudos para compreensão dos construtos em voga; (iii) “desentranhar”: exercício dialético ao sair do universo emergido e retornar ao lugar de fala.


Desse modo, realiza-se a imersão no campo de estudos da midiatização a partir das três correntes: institucionalista - Hjarvard (2007, 2014), Hjarvard e Driessens (2017); construtivista social - Couldry (2004, 2008), Couldry e Hepp (2017), Hasebrink e Hepp (2018), Hepp (2020), Knoblauch (2013, 2020); e latino-americana – Braga (2006, 2017), Fausto Neto (2004, 2008), Ferreira (2017), Carvalho e Lage (2012), Santi (2017). Posteriormente, empreende-se uma tipificação do conceito de discurso para Análise do Discurso Crítica (ADC), especificamente, para a Teoria Social do Discurso (TSD) de Fairclough (1989, 1995a, 1995b, 1999, 2003, 2016). Por fim, a interlocução, indicada por Santi (2017), entre midiatização e discurso via ADC por meio da matriz semiológico-discursiva, debate-se sobre as possibilidades de análise da comunicação no cenário da “sociedade da midiatização”.


O objeto da Comunicação é compreendido como “toda e qualquer conversação”, localizada nas mídias, signos e/ou episódios interacionais (Braga, 2011, p. 63-66), possibilitando a vinculação social consciente e inconsciente, que se estabelece socialmente e no psiquismo do sujeito (Sodré, 2002). Entende-se, como Braga (2011), que o campo da Comunicação requer a devida problematização pelas demais áreas de conhecimento, as quais tende a ter uma visão instrumental da mídia, vinculada à circulação de sentidos das instâncias de emissão, mensagem e recepção.


O campo de estudos da midiatização não se caracteriza por uma teoria única e geral, mas por perspectivas (Couldry e Hepp, 2017). Em termos classificatórios[2], os autores e Hepp[3] (2020) reconhecem duas correntes: institucionalista e construtivista social. Martino (2019) valida a terceira tradição, a latino-americana.


A corrente institucionalista deriva das pesquisas dos meios de comunicação de massa, cujo foco tradicional está no papel da mídia, vista como uma “instituição semi-independente” (Hepp, 2019). Nesse ensejo, Hjarvard (2014, p. 13) entende a midiatização como uma “nova agenda de pesquisa”, sendo um processo macrossocial parcialmente constitutivo das sociedades, em que a mídia interpela e está inserida nas instituições culturais e sociais, exercendo um papel de centralidade social. Em complementação, Hjarvard e Driessens (2017) atentam que as práticas sociais foram substituídas por práticas mediadas, uma vez que a midiatização e suas dinâmicas se relacionam com outros processos como comercialização, globalização e politização, cuja inter-relação ocorre por metaprocessos. Nessa corrente, os estudos da midiatização enfocam no “papel da mídia na transformação das relações sociais e culturais”, reconhecendo a dominância dos meios de comunicação sobre outras instituições sociais, conforme Hjarvard (2014, p. 19),


Por seu turno, a corrente do construtivismo social possui origem nas pesquisas sobre as práticas midiáticas pelos vieses dos usos da mídia e da produção midiática, segundo Hepp (2019). O construtivismo social assume que a realidade social é construída por meio das ações sociais, com base na obra de Berger e Luckmann ([1966] 2014). Para Knoblauch (2013, 2020), essa construção é de ordem comunicativa, tendo em vista que as ações comunicativas resultam em formas comunicativas que constituem as instituições da cultura comunicativa da sociedade. Na visão de Couldry e Hepp (2017), a construção do mundo social não é mediada, mas midiatizada: a dinâmica e estrutura alteram-se e são constituídas conforme o desempenho contínuo e recursivo da mídia em sua construção, o que não significa uma subordinação ou colonização social fruto do funcionamento midiático.


Hepp (2020), Couldry e Hepp (2017) argumentam que a midiatização desenvolve-se em fases decorrentes do avanço das tecnologias comunicacionais e que as sociedades ocidentais contemporâneas vivenciam o estágio de digitalização caracterizado pela “deep mediatization”: processo dinâmico e multicamadas de entrelaçamento do mundo social com tecnologias de mídia difundidas, tendo como efeitos a transformação da mídia, comunicação, cultura e sociedade. Essa perspectiva incorpora a análise de algoritmos, data e infraestruturas digitais aos estudos da midiatização (Hepp, 2020), conjugando a dimensão da semiose com o mundo material.


A tradição latino-americana concebe a midiatização tanto como ambiência quanto processo articulador dentro de práticas sociais. Na denominada “sociedade da midiatização” (ou hipermidiatização), incide o “bios midiático” (Sodré, 2002) como novo ecossistema (ambiência) determinante para outros modos de ser, agir e estar no mundo, esclarece Santi (2017). A preocupação analítica recai sobre os processos e não mais sobre os meios. Por conseguinte, as mídias constituem e são constituídas pela ambiência societal, não sendo a realidade exterior ao sujeito.


Como processo articulador, a midiatização não está restrita ao “campo das mídias”, atravessando os campos sociais. Nessa dinâmica, os processos de interação “em midiatização” modificam o perfil, os sentidos e os modos de ação dos campos sociais. Conforme Braga (2017), os dispositivos são modulados pelo contexto e processos instituídos, em que os “produtos mediáticos” são o “momento”, a materialização de um circuito. O conceito de dispositivo confere à mídia o papel de “sujeito organizador” da vida social e simbólica (Fausto Neto, 2004). Com isso, a midiatização procura regular a ordem social, em que as práticas significantes (e a dos meios) podem interferir na realidade das práticas sociais, com efeitos nas práticas cotidianas.


As nuances conceituais da midiatização traçadas brevemente evidenciam a fluidez e a ausência de um consenso teórico, como atentam Carvalho e Lage (2012). As correntes teóricas são angulações de entrada no campo de estudos e permitem compreender aspectos significativos da midiatização. Como ponto de partida para o desenvolvimento da pesquisa, filia-se ao conceito de midiatização delineado por Ferreira (2017) dentro da tradição latino-americana:


 


A midiatização é a materialização da experiência mental da espécie,
passando pelos processos sociais de acessos, usos, práticas e apropriações, configurando dispositivos agenciadores dessas práticas - num processo circular e de circulação entre meios e práticas sociais -, diferenciados conforme posições de atores e instituições. (FERREIRA, 2017, p.367)


 


A referida conceituação viabiliza adentrar na dialética com o conceito de discurso da ADC, ao permitir compreender: (a) a midiatização como processo não homogêneo que atua como ponte para o estabelecimento de relações entre aparatos técnicos, sujeitos e interações, rompendo-se com a noção de campo midiático autônomo e organizador central da sociedade, bem como com o foco no meio ou produto midiático; (b) o modo de engendramento social possibilitado pelo processo de midiatização, que opera na tessitura entre sujeitos, discursos, instituições e normas sociais, retomando aqui o conceito de dispositivo de Foucault (1999); (c) a dinâmica de constituição do mundo social, que ocorre em duplo movimento de condicionamentos e poder entre sujeitos, com seu psiquismo, e exterioridade, em que a midiatização se estabelece de modo rizomático e perene nas esferas sociais.


Em suma, a midiatização projeta efeitos de sentido e impactos linguísticos, discursivos e sociais para além da interação, do circuito comunicativo e do contexto enunciativo, perpassando práticas discursivas e não-discursivas. Nessa dinâmica, midiatização está diretamente relacionada com “espacialidade, sistemas sociais, temporalidade social e as ambiências culturais” (Santi, 2017).


O segundo conceito da presente pesquisa – discurso - é tecido no decorrer do desenvolvimento da ADC, entendida como método na pesquisa social para investigar as mudanças sociais, fundamentado na dialética e transdisciplinaridade, segundo Fairclough (2016), por meio da análise sistemática das relações entre discurso e outros elementos do processo social, em movimentações investigativas nas dimensões textual, discursiva e social, permitindo compreender parte da complexidade de funcionamento do mundo social. Sendo assim, o texto e as interações representam apenas um espectro momentâneo do jogo de tessituras complexo que atravessa e se entrelaça com os modos de ser, estar e simbolizar o mundo social.


O discurso, de acordo com Fairclough (1995b), é conceituado na associação entre duas correntes de pensamento: (a) visão predominante nos estudos linguísticos - um modo de ação social historicamente situado e interação, cujas estruturas organizam a produção discursiva nas sociedades; (b) perspectiva de Foucault ([1971] 1996) – modo de construção social da realidade, uma forma de conhecimento. Assim, o autor propõe pensar o uso da linguagem como uma prática social, tendo papel central na reprodução, na construção das realidades e sensos de mundo e nas trocas socioculturais, ao lado de outras práticas não discursivas (Fairclough, 2008).  


Em um primeiro momento conceitual, Fairclough (1989, 1995a, 1995b, 2016) considera o discurso como essencial e organizador da estrutura social, seguindo a ótica de Foucault ([1971] 1996), mas propondo um ferramental analítico para investigar a materialidade desse processo na dimensão textual. Nesse momento, Fairclough (1995b) considera que “discurso das mídias” possui impacto não apenas em razão da representação seletiva do mundo, mas também na projeção de identidades sociais, valores culturais e na definição de relações sociais. Posteriormente, Fairclough (2003) e Chouliaraki e Fairclough (1999) retiram o foco da centralidade do discurso nas práticas sociais para considerá-lo como apenas um momento das práticas.


Van Leeuwen (2008) esclarece que o discurso é uma cognição social que recontextualiza a prática social, ou seja, a prática social (fazer algo) não pode ser confundida com a representação da prática social (falar sobre algo). A TSD considera que as práticas sociais se estabelecem dentro da dinâmica do mundo material e suas atividades, sendo uma conjunção entre ação e interação, discurso e semiose, relações sociais, sujeitos e fenômeno mental. A prática social constitui-se como forma social de regulação do modo de fazer as coisas (Van Leeuwen, 2008), em que as formas de ação e interação são definidas pelas práticas sociais (Fairclough, 2003).


Face ao exposto, vislumbram-se algumas interfaces dialéticas entre midiatização e discurso. A midiatização - como processo imbricado com as práticas sociais - indica uma primeira conexão: a investigação do processo de midiatização requer um olhar para além do fluxo e intercâmbio de sentidos, considerando também os sistemas sociais, as ambiências culturais, a espacialidade e a temporalidade social. Essa noção pode contribuir para avançar na noção, até então, empregada pela TSD da mídia como instituição e campo dominados pelos meios de comunicação em larga escala. Cabe observar que o arcabouço teórico da TSD foi construído anteriormente aos estudos da midiatização.


A particularidade do funcionamento do processo de midiatização como dispositivo configurador da prática social permite perceber as relações entre sujeito-mundo e mundo-sujeito. A associação da midiatização ao conceito de dispositivo, no sentido de Foucault (1999), traz uma compreensão desse processo como um magma social que pode ser observado por meio de traços deixados nas materializações linguístico-discursivas das interações e circuitos (e circulações posteriores), estabelecendo ordens de discurso e condições de gênero não transparentes.


A midiatização não se resume ao plano da linguagem, tendo associação direta com o mundo material. Assim como o discurso e suas ordens, o processo da midiatização também não é palpável e observável em sua integralidade, mas a investigação pode ser iniciada nas marcas deixadas nas materialidades lingüístico-discursivas, as quais (re)constroem fios de um complexo arranjo da estruturação social. Nesse ponto de vista, a ADC como método de pesquisa, com análises perpassando as dimensões textual, discursiva e social, pode contribuir para uma forma de investigação processual para os estudos da midiatização.


Paralelamente, a relativização do construtivismo social por Fairclough (2008) tende a deslocar da visão determinista sobre a midiatização: assim como outras práticas sociais, a midiatização não consegue transformar e construir o mundo de forma direta, já que são as relações complexas de poder do mundo social que determinam quais transformações são ou não possíveis.


Em linhas gerais, a midiatização apresenta-se como um rizoma que atravessa, condiciona e é condicionado por práticas sociais e discursivas, em que as investigações dos objetos comunicacionais não se constituem como o todo, redutor da complexidade, mas um recorte momentâneo sobre o mundo social.


 


[1] Na perspectiva dialética, assume-se que a relação entre os construtos teóricos da midiatização e discurso não significa substituir e/ou empregar as categorias analíticas da Análise do Discurso Crítica no conceito de midiatização; trata-se de um reconhecimento da necessidade de separá-las, a fim de evitar um ecletismo incoerente.


[2] A pesquisa utiliza essa classificação das correntes de estudos da midiatização como forma organizativa e didática, a qual não invalida outros modos de compreender o campo, tal como empreendem Fausto Neto (2004), Santi (2017) e Martino (2019), por exemplo.


[3] Hepp (2020) esclarece que outros autores, como Göran Bolin e Knut Lundby, distinguem três tradições, considerando a “tecnológica” como uma terceira via. Entretanto, com base no argumento de André Jansson, Hepp afirma que a perspectiva tecnológica ainda não emergiu como uma tradição independente.

Publicado
2020-10-26
Como Citar
FIGUEIREDO, Ivan Vasconcelos. Midiatização e Discurso. Anais de Resumos Expandidos do Seminário Internacional de Pesquisas em Midiatização e Processos Sociais, [S.l.], v. 1, n. 4, out. 2020. ISSN 2675-4169. Disponível em: <https://midiaticom.org/anais/index.php/seminario-midiatizacao-resumos/article/view/1103>. Acesso em: 24 abr. 2024.