A cultura de si: seriam as celebridades da internet mestres do cuidado de si?

  • Ana Carolina dos Reis de Moraes Trindade Universidade Federal do Rio Grande do Norte
  • Josenildo Soares Bezerra UFRN
  • Issaaf Karhawi

Resumo

1- Apresentação


O presente trabalho, de caráter teórico, tem como objetivo articular a hipótese de que a cultura de si está imersa na lógica midiática, com características próprias do nosso tempo, permitindo que as celebridades da internet possam ser consideradas mestres do cuidado de si. É de nosso interesse, também, compreender, de forma mais específica, como as práticas do cuidado de si são construídas e exercidas pelas celebridades da internet garantindo a elas o papel de mestre do cuidado.


Para tanto, no artigo completo, serão apresentados exemplos, a partir de postagens no feed do Instagram, com o intuito de identificar as técnicas de si utilizadas, bem como a compreensão dos processos que levam as celebridades da internet ocuparem o lugar daquele que cuida do cuidado do outro. Escolhemos para compor a discussão os perfis de Camila Coutinho, Lu Ferreira, Ju Romano devido a notoriedade midiática que cada uma delas possui na ambiência digital, bem como as contribuições com a questão teórica levantada. Ressaltamos, mais uma vez, que os casos apresentados são exemplos, portanto não tem nenhuma intenção de configurar uma amostra.


 


2- A cultura de si e o cuidado de si


Levando em consideração um sujeito mais flexível, passível de transformações, que Foucault (2010, 2014, 2017, 2020), em sua fase ética[1], se propõe a pensar a relação sujeito e verdade por meio da hermenêutica de si. Ele passa a investigar as formas e os modos de uma relação estabelecida consigo, que faz o sujeito se reconhecer como tal. Assim, pensou-se, anteriormente, nos jogos de verdades presentes nas relações de poder (um sujeito constituído por tecnologias políticas que o impedem de ser), mas volta-se para os jogos de verdades que estão inseridas na relação consigo mesmo e na constituição de si, com o objetivo de traçar uma história da verdade.


Amparando-se na atividade filosófica, Foucault (2017) debruça-se nas diversas possibilidades de transformação subjetiva encaradas pelo sujeito, pressupondo-se uma atividade ascética, numa relação ética e moral, em que ele é capaz de praticar exercícios e consciência de si, pensando a própria história enquanto liberdade do pensamento. Sendo considerado o filósofo da descontinuidade, ele vai até a Antiguidade Clássica a fim de traçar uma história do pensamento do cuidado com a verdade, onde problematiza o que o sujeito é, o que ele faz e o contexto em que se inscreve. Lá, encontra uma cultura de si permeada por práticas – ou tecnologias de si- que o autor vai chamar de “arte da existência” (techne tou biou), que são executadas de forma voluntária, “pelas quais os homens não apenas determinam para si mesmos regras de conduta, como também buscam transformar-se, modificar-se em seu ser singular, e fazer de sua vida uma obra que seja portadora de certos valores estéticos que correspondam a certos critérios de estilo” (FOUCAULT, 2017, p. 193).


A arte da existência tem como fundamento o epiméleia heautoû, isto é, o cuidado de si, a prática de ocupar-se e preocupar-se consigo, de estar no mundo. Esse princípio toma a forma de uma atitude, de um estilo de vida que se pauta numa conduta de racionalidade moral (FOUCAULT, 2020). Com isso, são instituídas maneiras de se viver, a fim de formar e transformar o sujeito, uma vez que são desenvolvidas, aperfeiçoadas e ensinadas. Foucault (2020, p. 62) diz que o cuidado de si “é um princípio válido para todos, todo o tempo, durante toda a vida”; assim, a existência do sujeito torna-se um exercício permanente por meio de um conjunto de ocupações, um labor, que necessita de tempo para cuidar do corpo (saúde e exercícios físicos), das satisfações e das necessidades, além de leituras e meditações (num exercício de consciência onde observa-se o que se pensa e o que ocorre no pensamento).


É importante ressaltar que, segundo Foucault (2010), a questão do sujeito, foi inscrita, por muito tempo, em um outro preceito que era a prescrição délfica do conhece-te a ti mesmo (gnôthi seautón). Entretanto, ainda na perspectiva do autor, a boa condução de si, o cuidado consigo, resulta no conhecimento de si; a gnôthi seautón leva a formação do sujeito e a dominação das atitudes que podem, numa certa medida, arrancá-lo desta vida filosófica, desta arte da existência. A condução da verdade é imperativo do se conhecer, pois, para Foucault (2017, p. 263) “não é possível cuidar de si sem se conhecer. O cuidado de si é certamente o conhecimento de si – este é o lado socrático-platônico-, mas é também o conhecimento de um certo número de regras de conduta ou de princípios que são simultaneamente verdades e prescrições”. Logo, é possível de dizer que: cuidar de si é revestir-se de atitudes éticas em conexão com os jogos de verdades.


Foucault (2014, p. 177) vai dizer que Sócrates é o homem do cuidado de si; “ é aquele que zela para que os seus concidadãos ‘se preocupem com eles mesmos’”. Em Alcibíades[2], encontra-se o ponto de partida para os estudos do cuidado de si. Neste diálogo, três questões são fundamentais para a sua compreensão: a primeira questão é que o princípio do cuidado de si é uma prática para a vida, que implica numa preparação que não é momentânea, compreendida enquanto uma forma de vida, cujo objetivo é o estabelecimento de um certo número de relações consigo e um âmbito político (possuir domínio de si); a segunda diz respeito a formação do sujeito, onde as práticas de si incidem na desconstrução de maus hábitos, na coragem de lutar contra as adversidades durante toda a vida e, por fim, no cuidado da alma e do corpo; a terceira questão é a prática social, pois o cuidado de si ampara-se na relação consigo e com o outro. Este outro é visto como um mestre que lhe oferece ajuda, conselhos para uma boa condução de si (FOUCAULT, 2014).


Trazendo a cultura de si para a contemporaneidade, a quem podemos denominar o mestre do cuidado de si? Numa tentativa de um diagnóstico do presente, é possível dizer que as celebridades da internet são mestres que nos levam ao cuidado, em outras palavras, é o sujeito que cuida do cuidado do outro, através de conduções de ações de si. As condutas são apresentadas através de postagens em suas redes sociais digitais, oferecendo diversas possibilidades de ser e estar no mundo. Nas suas construções discursivas, em vias de um dizer verdadeiro, as celebridades da internet convidam seus seguidores para experiências de si ao proporem rotina de exercícios físicos, tempo para o autoconhecimento, rotinas com o cuidado do cabelo e da pele, além de propor momentos de pausas e de meditações, tudo isso atrelado a indicações – diretas e indiretas- de produtos e serviços.


 


3- Celebridades e Celebridades da internet


Sabemos que o fenômeno das celebridades antecede às mídias digitais. Elas sempre estiveram presentes nos mais diversos meios de comunicação, estampando capas de revistas, campanhas publicitárias, participação em programas de televisão, convocando seus públicos a não só acompanhar, mas fazerem parte do universo que é construído discursivamente. Contudo, a quantidade de pessoas que passam a ser reconhecidas por esse conceito cresceu graças à acessibilidade de produção, distribuição e consumo de conteúdo. Para Martino (2015), nem todos os sujeitos se tornarão celebridades, mas qualquer um pode ser uma. Afinal, o que difere a celebridade tradicional e da internet?


Para compreender o termo, França (2014) diz que a celebridade é uma pessoa que, por conta de seus feitos e qualidades, torna-se digna de celebração. Segundo a autora, “a construção da celebridade é um processo novo, característico de nosso tempo, que se explica e é resultado da visibilidade proporcionada pela mídia” (FRANÇA, 2014, p. 20). Já na perspectiva de Turner (2004), a celebridade pode ser considerada um gênero de representação e, também, um efeito discursivo a partir do modo como são percebidas nos contextos sociais. Para o autor, as celebridades são como mercadorias, ou seja, tornam-se produtos da mídia e, portanto, seu valor é negociado. Assim como Rojek (2008), Turner (2004) compreende as celebridades como formações culturais e, por isso, possuem atribuições sociais que lhes são próprias, sendo reformuladas constantemente frente às mudanças sociais. Podemos perceber, então, o modo como as celebridades reverberam nos processos de construção de produtos midiáticos, como no cotidiano dos indivíduos.


Já a celebridade da internet, segundo Abidin e Karhawi (2021), é aquela pessoa que, diante de suas habilidades e qualidades, sejam elas boas ou ruins, mantém-se presente na mídia com ampla visibilidade no ambiente conectado. Para a antropóloga, as qualidades são apresentadas por diferentes combinações, mas em uma dualidade de polos como, por exemplo, positivo ou negativo. “As celebridades da internet são conhecidas principalmente por sua alta visibilidade, seja ela atribuída à fama ou infâmia, atenção positiva ou negativa, talento e habilidade ou de outra forma, seja sustentada ou transitória, intencional ou por acaso, monetizada ou não”[3] (ABIDIN, 2018, p. 42-43, tradução nossa). Assim, “o principal atributo das celebridades da internet seria o acúmulo de uma audiência que recebe certo tipo de informação, assiste, reconhece, contribui, de certo modo, oferecendo alta visibilidade para esses sujeitos midiáticos” (ABIDIN E KARHAWI, 2021, p. 290). Nesse sentido, a valoração da celebridade passa a ser agregada por meio de seu trabalho no digital, que garante a transição do anonimato para o reconhecimento, emulando, muitas vezes, algumas técnicas tradicionais para se produzir uma celebridade, mas com as adaptações necessárias, que se baseiam nas mídias digitais, por meio de trabalhos intencionais com foco na construção de sua carreira, investindo em ações, objetivando sucesso e valorização da sua audiência. Abidin e Karhawi (2021) nos contam que existe, também, uma preocupação das celebridades da internet sobre a informação, onde suas habilidades são intensificadas a fim de ampliar tópicos específicos de conteúdo, conversações, reflexões e estilos de vida.


A relação das celebridades da internet com seu público seguidor reflete, diretamente, com os vínculos construídos por meio do que Abidin (2015) classifica como “percepção de intimidade” devido à proximidade com seu público possibilitada pela democratização produtiva e discursiva, estabelecendo uma espécie de contrato. Em seus espaços ou comunidades, as celebridades da internet rompem o distanciamento por meio de histórias de vida que são próximas, em uma certa medida, da realidade de seu seguidor, colocando-se, muitas vezes, como iguais. Lá, compartilham-se fragilidades, cotidiano, alegrias, frustrações, conquistas e perdas, numa espécie de desnudar de tudo, utilizando do seu tempo conectado “para compartilhar suas próprias vulnerabilidades, isso faz com que se instaure uma relação de equidade entre aqueles que o acompanham – um certo efeito de igualização” (ABIDIN E KARHAWI, 2021, p. 292).


 


 


 


Referências

 


 


ABIDIN, Crystal; KARHAWI, Issaaf. Influenciadores digitais, celebridades da internet e “blogueirinhas”: uma entrevista com Crystal Abidin. Intercom, Revista Brasileira Ciência Comunicação, São Paulo, v. 44, n. 1, p. 289-301, abr. 2021. Disponível em http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S180958442021000100289&lng=pt&nrm=iso . Acesso em  5  agosto de  2022.


 


______, Crystal. Internet Celebrity: Understanding Fame Online. Bingley, UK: Emerald Publishing, 2018.


 


______, Crystal. Communicative Intimacies: Influencers and Perceived Interconnectedness. Journal of Gender, New Media, & Technology, College Park, v. 8, nov. 2015. Disponível em: http://adanewmedia.org/2015/11/ issue8-abidin/.  Acesso em: 5 agosto de 2022.


 


FOUCAULT, Michel. A hermenêutica do sujeito. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2010.


 


______, Michel. Ditos e escritos, volume IX: genealogia da ética, subjetividade e sexualidade. Rio de Janeiro: Forense, 2014.


 


______, Michel. Ditos e escritos, volume V: ética, sexualidade política. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2017.


 


______, Michel. História da sexualidade 3: o cuidado de si. São Paulo: Paz e Terra, 2020.


 


KARHAWI, Issaaf. De blogueira a influenciadora: etapas de profissionalização da blogosfera de moda brasileira. Porto Alegre: Sulina, 2020.


 


MARTINO, Luís Mauro Sá. Teoria das mídias digitais: linguagens, ambientes, redes. Rio de Janeiro: Vozes, 2015.


 


ROJEK, Chris. Celebridade. Trad. Talita M. Rodrigues. Rio de Janeiro: Rocco, 2008.


 


SHIRKY, Clay. A Cultura da Participação: criatividade e generosidade no mundo conectado. Rio de Janeiro: Zahar, 2011.


 


TURNER, Graeme. Understanding celebrity. Thousand Oaks, CA: SAGE, 2004.


 


[1] Na tentativa de periodizar os estudos de Foucault, alguns especialistas apontam para três fases: a primeira é a arqueológica, a segunda fase é a genealógica e a terceira a fase ética.


[2] Diálogo socrático.


[3]  “Internet celebrities are mainly know for their high visibility wheter this be attributed to fame or infamy, positve or negative attention, talent and skill or otherwise, and whether it be sustained or transient, intentional or by happenstance, monetized or not” (ABDIN, 2018, p. 42-42).

Publicado
2022-11-07
Como Citar
TRINDADE, Ana Carolina dos Reis de Moraes; BEZERRA, Josenildo Soares; KARHAWI, Issaaf. A cultura de si: seriam as celebridades da internet mestres do cuidado de si?. Anais de Resumos Expandidos do Seminário Internacional de Pesquisas em Midiatização e Processos Sociais, [S.l.], v. 1, n. 5, nov. 2022. ISSN 2675-4169. Disponível em: <https://midiaticom.org/anais/index.php/seminario-midiatizacao-resumos/article/view/1548>. Acesso em: 20 abr. 2024.