A midiatização da violência de gênero: análise de ambientações, interações e atores sociais na série “Pacto Brutal

  • Verusca Yasmim Paiao Rocha UFJF
  • Jhonatan Alves Pereira Mata UFJF

Resumo

 


 


Dirigida, concebida e produzida por Tatiana Issa e Guto Barra, a série Documental “Pacto Brutal” (HBO, 2022) é lançada com a promessa de leitura de “trazer à tona a verdade a partir dos autos do processo”. O mote da produção é abordar o assassinato da atriz Daniella Perez, filha da novelista Glória Perez, ocorrido em 1992.  A participação na narrativa, na condição de mãe da vítima, e a exigência para que a produção não desse voz aos assassinos são justificativas da novelista para dissipar o tom folhetinesco da narrativa do crime, que emaranhou discursos do mundo real e do fictício. Isto se deve sobretudo (embora não justifique) ao fato de que o assassino e a vítima atuavam como par romântico na novela que Glória dirigia à época (“De corpo e Alma”). Em cinco episódios de uma hora, a série trabalha - segundo Issa - com temáticas como“[...]sensacionalismo, feminicídio e culpabilização da vítima”(VEJA, 2021) - questões caras à sociedade midiatizada, que não só compreende a crescente expansão dos meios de comunicação como também modifica a cultura e diferentes práticas sociais. 


Ao analisar os diferentes esforços teóricos que vêm sendo desenvolvidos para tratar o termo midiatização(que abarca fenômeno e conceito), França(2020, p.39) reforça que dinâmicas distintas como comunicação e a constituição da vida social ou o comunicacional e cultural não devem ser separadas, mas vistas como mecanismo imbricado. Isto é, não há como compreender a sociedade contemporânea sem falar na mídia e suas nuances. A pesquisadora defende que para pensar comunicação na sociedade é imprescindível observar o entrelaçamento das múltiplas dinâmicas que animam a vida social. Em suas palavras, 


 


As discussões sobre a midiatização nos incitam a pensar a penetração das lógicas midiáticas nos distintos campos da vida social, o entrelaçamento entre as diferentes práticas que configuram a vida social. Não se trata de “sociologizar” a comunicação, mas estudar os processos comunicativos sem perder de vista o quadro interativo (posicionamento dos interlocutores, situação) e seu contexto mais amplo. Esta tem sido a abordagem de autores da temática da midiatização (como Hjarvard e Hepp, entre outros), que devem ficar como diretriz importante para qualquer estudo da mídia em nossos dias(França, 2020, p.41).


 


A perspectiva de França não só evidencia o potencial contínuo que a midiatização apresenta de mudança cultural e da sociedade como  indica transformações média-comunicativas. A partir desse cenário, reforçamos a função pedagógica do telejornalismo(Vizeu, 2009) que  não só colabora para o entendimento do mundo da vida, como um lugar de mediação entre os diversos campos do conhecimento, como - por meio da dramaturgia do telejornalismo(Coutinho, 2012) - configura as produções audiovisuais, como Pacto Brutal, num lugar de referência (Vizeu e Correia, 2008) na busca de um cobertura midiática com equidade.


Em busca de um jornalismo não sexista, (Coutinho e Pereira, 2021) propõem a adoção das questões de gênero como um item de qualidade informacional para o jornalismo audiovisual. As autoras defendem, a partir dos estudos freirianos, que uma abordagem pedagógica incorporada no modo de narrar característico do jornalismo audiovisual poderia desconstruir estereótipos identitários de mulheres e contribuir para a promoção de comportamentos não machistas via telejornalismo. Nas palavras de Coutinho e Pereira (2021, p. 87),


[...] o telejornalismo, por meio da incorporação do enfoque de gênero pela sua dramaturgia própria, assumiria, ainda, um papel pedagógico, orientando a sociedade na desnaturalização de questões culturais arraigadas, transformando os modos de ler, ser e estar no mundo. [...] Tal perspectiva assume que o jornalismo é uma forma de conhecimento [...], ao narrar o mundo e um modo de conhecê-lo, os telejornais por meio da dramaturgia do telejornalismo atuam como poder, agenciam uma dada governamentabilidade. A proposição da perspectiva de gênero como um elemento capaz de estimular a produção de noticiários e produtos jornalísticos audiovisuais em direção à uma sociedade com mais equidade, nas telas e para além delas, dialoga com os saberes necessários apontados por Paulo Freire em Pedagogia da Autonomia (1996).


 


Nesse sentido, a presente análise busca lançar luz sobre modos de narrar possíveis que teriam o potencial de ir ao encontro de práticas jornalísticas audiovisuais que apresentam vítimas de feminicídio, como Daniella,  como seres dotados de direitos, ampliando o debate da violência contra a mulher e a desigualdade de gênero.  Entre os questionamentos possíveis e necessários para coberturas jornalísticas audiovisuais a partir de uma perspectiva de gênero, Coutinho e Pereira (2021) sugerem perguntas para jornalistas envolvidos na construção de narrativas sobre casos de feminicídio: o texto relaciona as mortes à discriminação de gênero e à cultura patriarcal em nossa sociedade? As motivações dos crimes são apaziguadas ou relativizadas em função da conduta das vítimas? O texto orienta o indivíduo sobre as formas de violência contra mulheres e como rompê-las/combatê-las/denunciá-las? Políticas públicas e leis que promovem a proteção à mulher e a promoção da equidade são mencionadas? Entendendo que o jornalismo atua como importante desnaturalização de questões culturais arraigadas transformando modos de ler/ ser e estar no mundo, também achamos pertinente analisar se sobre a síndrome de Darth Vader se manifesta na trama. Segundo o autor, “Trata-se de um ‘vilão sem rosto’, construído meticulosamente para que sua face oculta potencialize os efeitos malignos e o suspense típicos de violão clássico” (Mata, 2013, p.169). Se Glória quis contar a verdade(UOL, 2021)em Pacto Brutal por meio da justiça e depoimentos, até então era tudo mentira da imprensa, sobretudo do jornalismo? Testemunhos de comunicadoras e jornalistas como os de Glória Maria e Sônia Abrão,  situam o telejornalismo como um terreno perigoso, mas cumpre questionar o próprio papel destes jornalistas que aparecem na série e questionam a midiatização do caso  como se fossem parte externa a ele. Nesse sentido, a Síndrome de Darth Vader se faz presente?O jornalismo é feito por jornalistas. Quem atuou a favor e contra aquilo que constava nos autos? Lembrando que jornalismo se faz de apuração, de objetividade (ainda que do método e não do jornalista, algo utópico ). Como criticar a desinformação trabalhando com ela? Como personagens, ambiências, instituições e atores são tratados em tela? Será que “Pacto Brutal” contribui para deslocar o crime de feminicídio (cuja tipificação só veio em 2015 e cujo caso muito contribui para alterações na legislação e jurisprudência) para um lugar distinto daquele espaço folhetinesco de 1992? Como questões caras à pesquisa desenvolvida no âmbito do PPGCom-UFJF, como machismo, misoginia e culpabilização da vítima são trabalhados na série? A culpabilização da vítima a partir de uma mixagem tosca entre a trama da novela e o assassinato na “vida real” (o nome “De corpo e alma” foi macabramente um facilitador dessa confusão inclusive, infelizmente) a questão da mídia e sua relação com o imaginário popular e construção de realidades. Quantas foram as mortes de Daniella? Além dos golpes no peito, ela teve sua vida maculada em telas.O poder de um “par romântico” da ficção tentando legitimar essa questionável ideia de “crime passional”. Como se Bira tivesse seus motivos para matar Yasmim (é bom sempre rememorar, na reflexão, que a última cena da ficção gravada tratava de uma separação entre os personagens inclusive). Ao encontro da indagação, Jost(2009) explica que a ficção também remete à realidade, não há rupturas radicais entre mundo real e fictício e que as ficções são desempenhadas por atores, eu-origem fictícios e não Eu-origem reais (mas e no caso da série em que atores da trama agora atuam como testemunhas ou personagens presentes na época do assassinato? (Raia, Assunção, Gazola, Frota, Marilu Bueno , etc). É Neste contexto, a produção nos motiva a investigar questões que abordam a midiatização do feminicídio.


Para realizar este estudo, optamos pela a metodologia da Análise da Materialidade Audiovisual(Coutinho, 2016, 2018), que consiste em um processo de entrevistar o objeto com base nos conceitos escolhidos para a realização deste estudo.Esta metodologia permite entender o audiovisual como um todo: imagem, som, enquadramento, edição e tempo de forma que todos esses elementos são considerados na hora de fazer o estudo. A Análise da Materialidade Audiovisual é feita em cinco passos, que leva a entender o contexto no qual o objeto está inserido. A autora Iluska Coutinho (2018, p.192) apresenta o processo de análise neste trecho,


 


1) identificação do objeto audiovisual (e suas propostas); 2) emolduração e elaboração da ficha de análise; 3) pré-teste do


instrumento; 4) pesquisa documental/definição e obtenção da amostra


a ser investigada; 5) construção de parâmetros de interpretação dados e, em casos eventuais, de uma material codificação. (COUTINHO, 2018, p.192)


 


Com foco nos depoimentos, cenários, uso de arquivos, planos e enquadramentos bem como as promessas do real(Jost, 2009) e o aporte teórico estabelecido anteriormente, elaboramos três eixos conceituais que nos permitirão mapear pactos- e promessas de leitura- tecidos com/para o público  São eles:


 


1-A ambiência – do crime e da série;


2-Dispositivos e interações para compreender o feminicídio;


3-Instituições e atores envolvidos (pensando aqui em atores no sentido duplo- sociais e atores da dramaturgia)





Referências


 


COUTINHO, I. O telejornalismo marcado nas pesquisas e a busca por cientificidade: A análise da materialidade audiovisual como método possível, 2016. 


 


COUTINHO, I. Compreender a estrutura e experimentar o audiovisual. Da dramaturgia do telejornalismo à análise da materialidade. In: Epistemologias do telejornalismo brasileiro. Cárlida Emerim, Iluska Coutinho e Cristiane Fingers(orgs.) Coleção Jornalismo Audiovisual. V7. Florianópolis: Insular, 2018. 


 


COUTINHO, I.Dramaturgia do telejornalismo: a narrativa da informação em rede e nas emissoras de televisão de Juiz de Fora-MG. Rio de Janeiro: Mauad X, 2012.


 


COUTINHO, I; PEREIRA, A. Perspectiva de gênero em telas: acréscimos ético-informacionais à dramaturgia do telejornalismo. In: EMERIM, C., PEREIRA, A., 


COUTINHO, I (org.). Teorias do telejornalismo como direito humano. Florianópolis: Insular, 2021, v. 11, p. 75-89.


 


FRANÇA, Vera V. Alcance e variações do conceito de midiatização. In: FERREIRA, J; GOMES, P. G.; FAUSTO NETO, A; BRAGA, J.L.; ROSA, A.P. (Org.). Redes, sociedade e polis: recortes epistemológicos na midiatização. santa Maria: FACOS-UFSM, 2020, v. 1, p. 23-44. Disponível em: https://bit.ly/3E3K4nD.


 


JOST, F. Que significa falar de “realidade” para a televisão? In: GOMES, Itania Maria Mota (Org.).Televisão e realidade. Salvador: EDUFBA, 2009. 


 


MATA, J. Um telejornal pra chamar de seu: Identidade, representação e inserção popular no telejornalismo local. Florianópolis: Insular, 2013.


 


UOL, 2021. Disponível em: <https://aventurasnahistoria.uol.com.br/noticias>. 


 


VEJA, 2021. Disponível em: <Sonho impulsionou projeto de série documental sobre caso Daniella Perez | VEJA>


 


VIZEU, A., CORREIA, J. C. A construção do real no telejornalismo: do lugar de segurança ao lugar de referência. In: VIZEU, Alfredo (org.). A Sociedade do Telejornalismo. Petrópolis: Vozes, 2008. p. 11-28.


 


VIZEU, A. O telejornalismo como lugar de referência e a função pedagógica. Revista


FAMECOS, Porto Alegre, n. 40, p. 77-83, dez. 2009, quadrimestral. Disponível em


<http://revistaseletronicas.pucrs.br/ojs/index.php/revistafamecos/article/viewFile/6321/4596>. Acesso em: 12 ago. 2022.

Publicado
2022-11-07
Como Citar
ROCHA, Verusca Yasmim Paiao; MATA, Jhonatan Alves Pereira. A midiatização da violência de gênero: análise de ambientações, interações e atores sociais na série “Pacto Brutal. Anais de Resumos Expandidos do Seminário Internacional de Pesquisas em Midiatização e Processos Sociais, [S.l.], v. 1, n. 5, nov. 2022. ISSN 2675-4169. Disponível em: <https://midiaticom.org/anais/index.php/seminario-midiatizacao-resumos/article/view/1555>. Acesso em: 25 abr. 2024.