Midiatização, polarização e intolerância (entre ambientes, meios e circulações)

Ana Paula da Rosa 194 momento em que passou a restringir o acesso de outras imagens ou a vincular-se como um emblema ou decalque sobre outros vídeos e fotografias que remetam à situação da crise imigrató - ria, mesmo quando a veracidade da imagem é posta à prova ou questiona N d o a. entanto, Kurdi conquistou um espaço bastante singular no imaginário midiático. Sua imagem não é apenas a fotografia de um registro jornalístico de um acontecimento; na verdade cada vez menos o jornalismo vive de registros de acontecimentos. Pepe Baeza (2004) já alertava para esta crise do fotojornalismo, no sentido de que há um outro tipo de jor- nalismo visual surgindo. Sem entrar neste embate, a fotografia do menino evidencia um conjunto de operações de midiatização, orquestradas tanto pelos meios como por atores sociais e ins- tituições. É interessante investigarmos que tipos de operações entram em jogo neste caso, pois algumas delas têm durações muito diversas. Podemos considerar que, num primeiro mo- mento, a imagem de Aylan Kurdi foi produzida para a circulação, o que já demonstra uma lógica que extrapola o fazer jornalístico do registro, mas dá conta de pensar em estratégias de tornar tal imagem visível a ponto de “galvanizar o mundo” 4 . Num segun- do momento, a imagem causou comoção social e foi replicada e apropriada por artistas e ilustradores que reinseriram a imagem de Aylan Kurdi na circulação, prolongando seu tempo de visibili- dade e, logo, seu tempo de vida póstuma. Observa-se que a comoção foi fortemente amplifica - da por se tratar não da crise imigratória, mas de uma criança, a criança sem rosto, a criança que carrega todas as outras, as pas- sadas e as futuras. Kurdi é o retrato da infância, da vida precária, mas que é digna de ser vista (BUTLER, 2017) porque é um corpo que lembra a importância da vida. O menino é um pequeno már- tir, recebe homenagens, continua aparecendo ciclicamente em postagens do Facebook atribuídas a não se sabe quem, inclusive como empréstimo (sem citar a fonte) de uma postagem de Noam Chomsky feita sobre a nossa memória. Nesta postagem Kurdi desaparece. Estranhamente, ele não desaparece da circulação. 4 Esta expressão é utilizada pelo pai de outro menino encontrado morto na praia emMyanmar, referindo-se à imagemde Aylan Kurdi como uma imagem-símbolo.

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