Midiatização, polarização e intolerância (entre ambientes, meios e circulações)

Ana Paula da Rosa 202 distante; portanto, a pós-vida de Aylan Kurdi se sustenta em uma imagem que machuca, que fere, mas que se autonomiza, porque toda e cada vez que reaparece ela reacende não a discussão pri- meira, mas o modo como fabulamos a infância. O corpo estirado na praia é o oposto da visão ideal de infância, mas, ao vê-lo, ratifi - camos a existência dessa criança-anjo, digna de ser vista, mas, por não ser imortal (ELIAS, 2001), é destituída não só do corpo, mas do direito à morte e, consequentemente, do ser. Ainda que seja uma imagem amplamente reconhecida, amplamente valorada na circulação (ROSA, 2016b) por estilhaçar o olhar, é uma imagem que esvazia o sujeito, que manifesta o lugar do seu não poder. Já a imagem de Marcos Vinicius desaparecida do fluxo, retirada, leva a um duplo movimento de apagamento. É o apa- gamento do arquivo que indica um “isto foi” barthesiano e é o apagamento da memória do acontecimento. Neste sentido, o es- tilhaçamento é o da memória, que se fragmenta. Para recompor a história de Marcos Vinicius, não basta sua fotografia; é preciso narrar, recuperar os dados. O jovem de 14 anos aparece, tem seu corpo ferido substituído por uma camiseta manchada de sangue. O uniforme da escola representa o corpo de um adolescente que se mistura a tantos outros que viram estatística. Porém, quando Marcos Vinicius é citado com a hashtag “Presente”, assim como Mariele Franco, ele deixa de ser só uma camiseta e passa a ser um sujeito com nome, família, amigos, integra uma rede simbóli- ca de vozes caladas. No entanto, ele é um sujeito sem corpo que é impedido de ter sua imagem em circulação e que, não obstante, é perpassado pela disputa de sentidos da dúvida. Sua imagem é personalizada e intransferível, e não há como lhe dar outros con- tornos e feições. Ainda que outros jovens da favela se vejam nele representados, não há como produzir integração dos estilhaços; assim, o afetamento é momentâneo, tende a ter a durabilidade do noticiário e de sua rememoração como data-marco, típica do fazer jornalístico, até que outro fato maior e mais importante ocupe o espaço. A imagem do jovem assassinado na favela não é con- templativa, é inclusiva, porque é fruto de um processo do qual todos somos parte. Assim, não há pós-vida da imagem de Marco Vinicius, mas seu apagamento completo da memória, ainda que boa parte de suas imagens estejam acessíveis a um clique. Não

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