Sapiens midiatizado: conhecimentos comunicacionais na constituição da espécie

Igor Sacramento 272 tima (e autoriza) o conhecimento sobre a verdade. Este regime de verdade se dá prioritariamente pela ideia acumulada do “eu estava lá” ao “eu vivi o que digo”. A experiência sugere também a ideia de um conhecimento acumulado pessoalmente. Logo, impõe um caráter de subjetividade, mas não necessariamente de diálo- go ou intersubjetividade. No lugar do conhecimento acumulado e comunicado, há uma maior valorização contemporânea da experiência acumulada e comunicada. Como já dito em outro momento, essa reconfiguração da verdade, de uma passagem de fatos verificáveis pelo método científico a uma primazia da certeza sensível dada pela expe- riência singular (SACRAMENTO, 2018), faz com que o próprio do testemunho da experiência do narrador seja pareado e, em certos casos, tornado equivalente à verdade, já que, como teste- munha, vítima ou sobrevivente, quem narra o que viveu lhe tem, na rotina social, autoridade e legitimidade conferidas. Afinal, o narrador passa a ser “digno de fé e confiança por ter vivido aqui- lo que narra” (RIBEIRO; SACRAMENTO, 2020, p. 11).5 Embora as raízes dessa crise epistêmica sejam visíveis, por exemplo, no movimento antivacina e na negação das mudanças climáticas, a COVID-19 pode ser nossa primeira pan- demia da era do que vem sendo frequentemente nomeado de pós-verdade. Muito menos do que um conceito, tal noção aponta 5 A Fenomenologia do Espírito começa com a conhecida figura da certeza sensível. Mas o que é essa certeza sensível? O conhecimento que é primeiro ou imediata- mente nosso objeto não pode ser outra coisa senão aquele que é em si mesmo conhecimento imediato, conhecimento do imediato ou do ser. A certeza sensível é, portanto, conhecimento imediato; melhor ainda, conhecer o imediato do pró- prio imediato, isto é, do puro ser. A certeza sensível é conhecer o ser imediato da coisa que conhece. Ela sabe que a cadeira em que você está sentado é, e que esta é a primeira e última verdade; ela sabe que as estrelas acima da cabeça existem, e imediatamente existem, isto é, elas são, independentemente de alguém saber ou não. Em suma, a certeza sensível conhece a coisa como um ser imediatamente, à parte do olhar da consciência que afirma esta verdade do ser imediato. E não só a coisa conhecida e pretendida é dita imediata, mas o eu que conhece o ser imediato da coisa diz-se imediato, isto é, um eu singular abstraído de tudo. E, por fim, a própria certeza sensível, como relação do eu e do ser imediato, também se diz imediata. Aparentemente, isso é do ponto de vista do filósofo – o ponto de vista do “para nós” na Fenomenologia do Espírito – e não da própria certeza sensível. Como, de fato, a certeza sensível poderia admitir a comediação do eu e da coisa, já que para ela tudo é imediato? Tanto mais porque parece ha- ver, então, uma contradição profunda: e a coisa e eu seríamos imediatos um em relação ao outro e mediados pelo outro.

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