Sapiens midiatizado: conhecimentos comunicacionais na constituição da espécie

Midiatização, pós-verdade e produção de conhecimento sobre a COVID-19 275 ma não só como conteúdo, mas também como forma – edição, jogo de cena, elementos cenográficos, qualidade da imagem, se amadora ou não). Há um novo regime de veridição, tal qual de uma produção de efeito de real como um efeito de vida real pelas imagens. Afinal, a experiencia, sobretudo em sua dimensao tes- temunhal, assumiu tal valor de autenticidade que garante maior “efeito de vida real”, pela fala de si, em primeira pessoa, num relato proprio sobre o que viveu. Dito de outro modo, a perfor- mance do sofrimento pessoal, no contexto da sociedade midia- tizada, vem sendo empregada para fundamentar certas afirmações acerca da própria vida, amparada por convenções culturais que valoram autenticidade do sofrimento na medida em que se convertem em imagens, sons e outros signos midiáticos (SACRAMENTO; BORGES, 2017). Assim, se alguém sofre ou sofreu, não pode estar mentindo, ainda mais quando se dispõe a relatar o próprio sofrimento numa experiência midiatizada. Há, portanto, demanda e valorização sociais para transformar as experiências íntimas em imagens e espetáculo. Esse novo ethos, uma deriva- ção a partir da retórica aristotélica, reflete a “imagem moral que o orador constitui [e constituía] discursivamente para o públi- co” (SODRÉ, 2002, p. 45) num ambiente fortemente marcado por uma nova forma de encenação da doxa cuja linguagem opera de forma prescritiva e orienta o processo de transformação do ethos em habitus, através de “técnicas de verossimilhança ‘natu- ralista’ (a clonagem imagística do mundo, seja por imagens cinematográficas e televisivas, seja pela visualidade computacional das redes)” (ibid., p. 52-53). Trata-se de uma configuração con- temporânea de controle moral e de legitimação de uma forma de verdade midiatizada. No que tange especificamente à produção e circulação dos discursos negacionistas no contexto brasileiro da pandemia de COVID-19, observamos um fenômeno que excede a mera negação do conhecimento mediado pelos procedimentos cien- tíficos. Ainda segundo Oliveira (2020), longe de simplesmente negar a ciência, as lideranças conservadoras brasileiras – sob influência direta do olavismo – rejeitam as formas de produção de conhecimento historicamente consolidadas para eleger as suas experiências e necessidades como os produtores da verda-

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