Sapiens midiatizado: conhecimentos comunicacionais na constituição da espécie

Igor Sacramento 276 deira ciência.7 Como todos os procedimentos científicos já esta- riam corrompidos a priori, “a observação direta, através da qual o pensador livre experimenta com o próprio corpo a realidade, sem ser condicionado por qualquer mediação metodológica, [parece ser] a única forma possível de conhecimento verdadei- ro” (ibid., p. 84). O conhecimento do verdadeiro, nesse contexto, passa do método filosófico-científico ao vigor do “saber construído a partir da vivência e do testemunho” (ibid., p. 82). Como observa Oliveira (2020), o empirismo cartesiano não é testemunhal, não suscita a experimentação direta da realidade, tampouco busca sua legitimidade na autoridade pessoal e moral do cientista; demanda distanciamento, um corte horizon- tal que permite o confronto do sujeito espiritual com o mundo dos objetos. Ao longo do século XX, aprofundou-se a insatisfação com o observador cartesiano incorpóreo e se acentuou a cor- porificação do sujeito do conhecimento8. O sujeito cognoscente 7 Olavo de Carvalho, que se autoproclama filósofo, é astrólogo, escritor, professor e influenciador digital, tornou-se o ideólogo principal da corrente nacional ul- traconservadora que se organizou em torno da ascensão de Jair Bolsonaro à Presidência da República e tem sido fundamental na manutenção de seu governo. Embora sem base e comprovação científicas, suas opiniões, que vão desde a fi- losofia aristotélica às relações internacionais, passando pela vacinação, contam com um número enorme de seguidores e discípulos, como eles se denominam. Carvalho alega repetidamente que suas ideias não são reconhecidas no campo científico por conta de perseguição ideológica, visto que a universidade brasileira, segundo ele, estaria dominada e controlada por aquilo que denomina como “marxismo cultural”. Mais informações podem ser encontrados no trabalho de Oliveira (2020). 8 Como Descartes explicou, em Discurso do método (2005), “não podemos duvi- dar de nossa existência enquanto duvidamos”. O cogito cartesiano – dubito, ergo sum (duvido, logo existo) – tornou-se um elemento fundamental da filosofia oci- dental, pois pretendia fornecer uma certa base para o conhecimento em face da dúvida radical. Embora outro conhecimento pudesse ser fruto da imaginação, engano ou manipulação, Descartes afirmou que o ato de duvidar da própria exis- tência servia – no mínimo – como prova da realidade da própria mente; deveria haver, segundo ele, uma entidade pensante – neste caso, o eu – para que haja um pensamento. Uma crítica comum ao dito é que ele pressupõe que exista um “eu” que deve estar pensando. De acordo com essa linha de crítica, iniciada por Nietzsche, em A gaia ciência (2012), o máximo que Descartes tinha o direito de dizer era que “o pensamento está ocorrendo”, não “estou pensando”. Em pri- meiro lugar, ao reverter o axioma de Descartes em “Sum, ergo cogito” (existo, logo penso), Nietzsche enfatiza que, de fato, uma ontologia social (que inclui elementos metafísicos, lógicos, linguísticos e conceituais) tem sido uma condi- ção que torna possível a inferência de Descartes da existência humana a partir de tais valores preestabelecidos. Aqui, Descartes parece não ter aplicado sua dúvida metódica completamente, uma vez que, para chegar a seu axioma, ele

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