Sapiens midiatizado: conhecimentos comunicacionais na constituição da espécie

Midiatização, pós-verdade e produção de conhecimento sobre a COVID-19 281 ajudam a infundir significado aos eventos, mas também nos permitem moldá-los às nossas próprias necessidades e desejos, comentá-los e contestá-los, numa dada conjuntura. Como tal, as narrativas nos ajudam a processar nossas experiências, comunicá-las a outros e reorganizá-las dentro de dinâmicas sociais de identidade e individualidade. Nossa cultura confere autori- dade considerável à pessoa que fala da experiência pessoal, que testemunhou eventos com seu próprio corpo, uma autoridade que às vezes pode ser abusada, mas uma autoridade que está em oposição direta à autoridade do perito, fundamentada em expertise generalizável e impessoal. A justaposição entre a voz da experiência pessoal em primeira mão e a voz do conhecimento científico é exercida emmuitos campos, incluindo saúde, direito, história, terapia e educação, por exemplo. O “eu estava lá, não você”, ou o “eu vivi isso, não você, soa com uma autoridade que é muito difícil de contestar. Esta tentativa de inoculação de uma reivindicação da crítica legítima, a sua elevação a verdade incontestável, não está longe do que se pode rotular de ideológica, uma ideologia que coloca como in- questionável a verdade narrada a partir da experiência pessoal da vítima, cuja articulação dessa experiência permite elevar a sua voz publicamente ao narrar sua experiência e ser um mo- delo de superação e de luta. Na configuração contemporânea do testemunho, ele se refere a um processo interior de reelaboração de si numa escala pública. Nesta forma, a vítima é um sobre- vivente que narra a superação do seu sofrimento. 2. Bolsonaro: o testemunho de um corpo curado pela hidroxicloroquina Desde o início da pandemia de COVID-19 no Brasil, Jair Bolsonaro tem mobilizado argumentos credenciadores e legiti- madores para a promoção da cloroquina e da hidroxicloroquina como potenciais soluções para os questionamentos, ansiedades e medos da população. Desta forma, na primeira postagem so- bre o medicamento em sua página oficial do Facebook, em 21 de março de 2020, publicou um vídeo informando que “[a]gora pouco os profissionais do Hospital Albert Einstein me informa-

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