Sapiens midiatizado: conhecimentos comunicacionais na constituição da espécie

Midiatização, pós-verdade e produção de conhecimento sobre a COVID-19 287 no tratamento da COVID-19: o testemunho, aqui, aparece como uma maneira de resistir à ciência e negá-la, instaurando a visão de mundo de um grupo político como a verdade a ser seguida. A negação do procedimento científico através da sobreposição da vivência e do testemunho à mediação metodológica não é algo exclusivo da economia discursiva do bolsonarismo. O discurso público sobre questões científicas controversas parece estar se aprofundando cada vez mais em uma posição em que menos importa a veracidade das alegações do que a possibilida- de de se se concordar com elas. Se não há verdade objetiva, então ninguém pode falar a verdade ao poder; nesse caso, a busca pela verdade foi substituída pela crença em determinadas opiniões como verdade absoluta. Estamos em uma era em que o conceito de verdade é usado de maneiras que não mais se alinham com o que a verdade tradicionalmente tem significado. Se a verdade objetiva não é mais algo que nos esforçamos para alcançar e se sabemos que todos os lados do espectro político estão engaja- dos em produzir sua própria verdade, então faz todo o sentido se alinhar com as verdades que consideramos mais receptivas para um sistema de valores e crenças particular. Dito de outra forma, se os níveis de confiança nas instituições diminuíram a ponto de agora se assumir que todos estão mentindo (embora não se observe que, se não há verdade, não há mentiras), então aceitar a narrativa que se encaixa melhor na visão de mundo de alguém parece fazer todo o sentido. Ainda não conseguimos compreender totalmente o quanto o encontro da extrema-direita com o ultraliberalismo no Brasil faz com o que aqui entendemos como negacionismo científico seja visto por aqueles que vivem tal sistema de crença como liberdade de expressão, como opinião e experiência pes- soais. Há uma disposição cultural contemporânea para a vocalização midiatizada de relatos, sobretudo em forma de testemu- nho. Uma das bases da democracia moderna – a liberdade de expressão, incorporada como pilar na definição de uma deontologia do jornalismo marcada pelas ideias e práticas profissionais de objetividade, imparcialidade e neutralidade (RIBEIRO, 2007; SCHUDSON, 2010) – vem sendo ampliada pela internet como umamanifestação frequentemente oposta à verdade objetiva, ba- seada em fatos verificáveis por meio de algum rigor metodológi-

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