Novos sobas no contexto midiático na sociedade angolana: estudo de um caso

  • Bantu Mendonça Katchipwi Sayla UNISINOS

Resumo

Debruçar-se sobre o tema acima, no contexto sócio histórico midiático, sugere-nos uma pesquisa de caráter experimental, cuja tessitura discursiva e natureza se apresenta bastantemente sinuosa e complexa. Trata-se daquela tessitura e natureza da qual não se possa levantar dados estatísticos e nem testar hipóteses, apenas gerar proposições teóricas. Assim este artigo pretende apontar pistas e caminhos inferenciais, e ou, proposições hipotéticas que serão testados e evidenciados no transcorrer da pesquisa de tese de doutorado em Ciências da Comunicação em andamento na UNISINOS.


            Neste movimento, pleiteamos a instauração de um processo baseado em observações e descrição de dados empíricos que nos auxilie na compreensão e construção de uma episteme descritiva do contexto histórico e cultural da sociedade angolana, marcado pelo choque entre uma cultura tradicional e uma outra cultura midiática emergente, orquestrada pelas Tecnologias da Comunicação (TIC’s). Por outras palavras, nossa pesquisa empírica situa-se na realidade sócio histórica e cultural angolana, um país que, tomando como referências os autores Yin (1984, p. 23) e Sodré (2002) passa, com o fim do conflito civil no ano de 2002 por um “rito de passagem” abrupto e transcendental, de um mundo analógico para um digital. Neste sentido, tomamos para objeto empírico e de observação, os possíveis marcos sobre as novas configurações e deslocamentos dos papeis sociais na sociedade angolana, na qual evocamos na condição de indício, o vídeo intitulado “PRIMEIRO DAILY VLOG #1”, de autoria do jovem Adilson Manuel[1]: “PROIBIDO VER[2].


            O vídeo extraído da plataforma de vídeo “YouTube” possui uma duração aproximada de 9 minutos e, encontra-se em circulação desde o dia 19 de abril de 2016 em seu no canal, onde 6.856 seguidores acompanham as postagens do Adilson Manuel. O seu canal e espaço na plataforma YouTube está situado e classificado na categoria de pessoas e blogs com a licença padrão do Youtube. No vídeo selecionado, detectamos a presença de trilha sonora da canção: "Tá Doce" de Cef, Young Double, Lil Saint & Big Nelo (iTunes). Até o dia 15 de dezembro de 2019, o vídeo foi visualizado 4.297 vezes e, deste total, 4.293 pessoas curtiram e apenas 3 não gostaram. Analisando ainda a publicação, 56 usuários deixaram comentários e nenhum destes fez o compartilhamento deste conteúdo, ou seja, não ocorreu o “espelhamento” em outras mídias sociais, a exemplo do Facebook, Twitter, etc.


            Todavia, sob a perspectiva da Midiatização e dos Processos Sociais, o vídeo parece estabelecer um contraponto entre as esferas tradicional e técnica, bem como se configura na denúncia social, por meio de relações contratuais e vínculos entre os homens (DURKHEIM 1995, p. 201), cujo papel regulador é exercido pelas autoridades tradicionais (FEIJÓ 2012), a que chamamos de “sobas”[3], no contexto angolano. Porém, neste objeto empírico observamos, a ocorrência de atravessamentos outros que nos induzem a pensar em uma sociedade angolana em vias de midiatização. Parafraseando Sodré (2006), a cultura midiática passa a ofertar aos angolanos uma nova ambiência sócio-técnico, cujo processos transbordam e transitam entre as diversas instâncias culturais. Estes processos cujos desdobramentos transbordam e transitam entre as diversas esferas e estâncias sociais culturais, leva-nos a inferir que talvez ocorra alterações nos padrões culturais e, provoque a conversão de uma estrutura tradicionais para outra de estrutura espectral, de nível impalpável e a descentralização do poder de fala.


            Usando de metáforas, percebemos, no empírico, a configuração de um cenário, que oferta aos adolescentes, um protagonismo que nos remete ao papel preponderante, regulador e orquestrador das questões vinculadas às políticas públicas, econômicas e sociais, anteriormente, exercidos pelas autênticas autoridades tradicionais, conforme Feijo (2012). O empírico reveste os adolescentes de “armaduras” sócio-técnica e culturais que lhes permite atravessar as lógicas das autoridades tradicionais e a transitar entre os diferentes campos e práticas sociais. Saindo do anonimato, eles formam o rodízio de equipe que atuando, de forma orquestrada, demonstra competências da classe de jornalísticas profissionais nas funções de atores, produtores, diretores de vídeos para o YouTube passando de meros prestadores de serviços para ofertar utilidade pública. Interessante perceber que, mais além, tais jovens transitam entre esferas de indivíduos influentes na política nacional, de analistas críticos e descritivos do sistema econômico e social angolano, de empresários e proprietários de agências de produção cinematográfica, de moradores de um bairro carente aos privilegiados da sociedade angolana.


            Ou seja, o protagonismo descrito por estes adolescentes nos infere traçar uma análise para novos areópagos e territórios de embates interacionais e em emergência, não somente nas três BIOS apontadas por Aristóteles, nomeadamente do conhecimento, do prazer e da política mas também do quarto BIOS, este, do VIRTUAL (SODRÉ 2006, p.99) que permeia todo um complexo processo de midiatização da vida (GOMES 2004). Para estes autores, o BIOS MIDIÁTICO transformou o modo de ser do homem no mundo e em todas suas ações do cotidiano. Deste gancho conceitual, o BIOS MIDIÁTICO possibilita desembocar uma transformação técnica neste espaço-tempo, cujas novas estruturas possibilitem outras configurações da vida social.


            Destaca-se, contudo, que, as marcas observadas em nosso objeto empírico parecem, no contexto angolano, não desvincular o sujeito das suas raízes antropológicas tradicionais. Esta consideração percebe que o adolescente Adilson Manuel tem a consciência de seu papel e condição de sujeito a partir do seu local de fala. O jovem retratado é morador do bairro de Luanda, capital de Angola e o que ele faz circular nas suas páginas das redes sociais. Ancorados em Ferreira (2009) percebemos que, este cenário condiz com que convencionamos chamar de Midiatização. Descrevendo melhor o fenômeno, propomos um contraponto à noção de circulação ou de feedback baseado no modelo clássico e tradicional angolano de comunicação e de exercício de autoridade, uma vez que, na circulação, o poder cultural encontra forças para fomentar separações entre os campos da produção e recepção. Pelo contrário, é na esfera da midiatização que estes papéis são constantemente alternados e a produção é compartilhada entre seus pares nas redes, enunciando no vídeo: “se vocês gostaram curtam e se inscrevam no meu canal”.


            Na fala deste adolescente podemos perceber um discurso de mão dupla e interacional entre as esferas de produção e de consumo simultaneamente. Ou seja, estamos diante de uma outra narrativa que passar a enunciar novas formas interacionais, entre produtores e receptores de mensagens que passam a complexificar seus papéis e, ao organizar em novas dinâmicas de interfaces. (FAUSTO NETO, 2010, p. 1). Isto significa, sob a perspectiva da circulação, perceber o surgimento de novas reconfigurações entre os agentes da fala e de suas respectivas comunicacionais. Estas novas reconfigurações e de agentes vão “além das relações diretas entre produtor e receptor”, porque como afirma Braga (2012, p.7) ela permite o fluxo-adiante que se relaciona com um outro, via contra-fluxo por meio das “curtidas e comentários do vídeo”. Entendemos o contra-fluxo de Braga como um processo que produz diversas transformações nas disposições dos sujeitos e dispositivos midiáticos cujas relações com as instituições e práticas discursivas disputam poder e espaço. Portanto, deduzimos que nos processos midiáticos, os interagentes possam assumir diversos circuitos – emissão/recepção, emissão/recepção/emissão e recepção/emissão/recepção – transformadas pelo processo de midiatização das instituições e dos indivíduos. Neste ponto, Ferreira e Rosa (2011, p. 03) afirma que, a novidade da sociedade em midiatização é a inexistência de centralidade na detenção do saber. O esquema tradicional de comunicação entre emissores e receptores entra em colapso. Neste cenário mais complexo, o emissor e receptor participam ativamente do processo de produção e do consumo da informação.


            No contexto angolano, os nossos indícios apontam para a inteligibilidade e autonomia comunicacional (SODRÉ, 2007) destes sujeitos, vinculando estes adolescentes às suas realidades sociais e as autoridades/marcas da tradição. Contudo, ao se inserirem na ambiência midiática passam a não só expor, mas a representar e a ressignificar seu mundo. Ou seja, ao expor suas realidade e indagações de mundo, os jovens se deixam a correr os riscos de perder-se no “outro”, contrariando o imperativo de que os indivíduos isolados e mediados por relações jurídicas tradicionais; implica abrir mão de si (sujeito) em função de um outro, não um outro sujeito individual, mas um outro impessoal e transcendente. Significa, sobretudo, desbravar um mundo novo, um novo modo de ser no mundo (GOMES, 2004) por meio de processos comunicacionais, contextos sociais e dispositivos midiáticos que, de forma complexa permitem múltiplas afetações dos mercados discursivos, porém, sem a diluição de um no outro, conforme visada de Ferreira (2011). Já para Sodré (2007, p. 17), a midiatização consistiria no “funcionamento articulado das tradicionais instituições sociais com a mídia”. Esta articulação interacional suscitaria a constituição de atmosferas estéticas, sensoriais, que viabiliza um certo encaminhamento político cultural que, no contexto discursivo do nosso objeto empírico estaria povoado pelos “multi-likes” investindo poder e autoridade de fala ao jovem Adilson. Ou seja, os “novos sobas na ambiência midiática.


            Portanto, epistemologicamente sustentados pelos aportes da Midiatização e pelos Processos Sociais, inferimos que, na sociedade angolana, os  sujeitos interligados ou em interação com o mercado de bens simbólicos transnacionais = cultura midiática global, via rede de fluxos (CASTELLS, 1996; BRAGA, 2011), é permeado por desconexões com as culturas locais (FEATHERSTONE,1995) entre os sujeitos. Estas desconexões nos levam a pensar em algo parecido ao que Harris e Moran (1996) ousaram de chamar de “choque cultural”. Em nosso entendimento, este choque cultural talvez provoque um rompimento com os laços e padrões da cultura tradicional, enquanto “conjunto de sistemas simbólicos, de códigos que, de uma forma ou de outra, regulam a conduta humana” (REIS, 1992, p. 66). Porém, no contexto angolano, ressalvamos que, este rompimento talvez não possa ser interpretado como perda das raízes antropológicas, mas sim, como uma ressignificação e deslocamentos dos papéis dos sujeitos falantes e dos seus lugares de fala, para novos areópagos, espaços virtuais, onde os atores sociais passam a disputar a autoridade e/ou “sobado”. Dai a expressão, dos novos sobas!


 


 


REFERÊNCIAS


 


BRAGA, J.L. Dispositivos Interacionais. Trabalho selecionado pelo GT Epistemologia da Comunicação. In: ENCONTRO DA COMPÓS, NA UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL, XX, Porto Alegre, Anais. Porto Alegre, 2011. p.15.


________, José Luiz. Circuitos versus campos sociais. In: MATTOS, Maria Ângela; JANOTTI JUNIOR, Jeder; JACKS, Nilda (Orgs.). Mediação e midiatização, Salvador: EDUFBA, 2012; Brasília: COMPÓS, 2012a. Disponível em <<https://repositorio.ufba.br/ri/bitstream/ri/6187/1/MIDIATIZACAO_repositorio.pdf>> Acesso em novembro de 2019


CASTELLS, M. Fluxos, redes e identidades: uma teoria crítica da sociedade internacional. In: CASTELLS, M. et al. Novas perspectivas críticas em educação. Porto Alegre: Artes Médicas, 1996. p. 3-32.


DURKHEIM, Émile. Da divisão do trabalho social. São Paulo, Martins Fontes, 1995.


FAUSTO NETO, Antônio. As bordas da circulação... Revista ALCEU - v. 10 - n.20 jan./jun. 2010. p. 55-69.


FERREIRA, Jairo. Espaço crítico no jornalismo para além da indústria. In: Metamorfoses Jornalísticas II: a reconfiguração da forma. Santa Cruz do Sul: Edunisc 2009.


FLORÊNCIO, F. et al (Org.), Vozes do universo Rural: Reescrevendo o Estado em África. Lisboa: Editora Gerpress e CEA. 2010.


FEATHERSTONE, M. Cultura de consumo e pós-modernismo. São Paulo: Nobel, 1995.


HARRIS, Philip R.; MORAN, Robert T. Managing Cultural Differences. Texas: Gulf Publishing Company, 1996. p. 402.


GOMES, Pedro Gilberto. Tópicos da teoria da Comunicação. São Leopoldo: Unisinos, 2004.


MATA. In: AÇO, Samuel. Experiência Histórica do Poder Local em Angola. Comunicação apresentada na IV semana social Nacional: "Democracia e Participação. Angola. 2012. Disponível em: <http://googleescolar.com/media/users/7/399161/files/23110/ Poder_local_Angoladoc.docx>. Acesso em: 12 dezembro. 2019.


ROSA, Ana Paula da; FERREIRA, Jairo. Midiatização e poder: a construção das imagens na circulação intermidiática. IN: TEMER, Ana Carolina Rocha Pessoa (org). Mídia, Cidadania & Poder. Goiania: FACOMB/FUNAPE, 2011. p. 19-38.


SODRÉ, M. Antropológica do espelho: uma teoria da comunicação linear e em rede. Petrópolis: Vozes, 2002.


________. As estratégias sensíveis: afeto, mídia e política. Petrópolis: Vozes, 2006.


________. Sobre a epistème comunicacional. Revista Matrizes, v. 1, n. 1, p. 15-26, 2007.


REIS, Michele. Theorizing Diaspora: Perspectives on “Classical” and “Contemporary” Diaspora. International Migration, Oxford, Main Street Malden, v. 42 (2). Blackwell, 2004. p. 41-54.


YIN, Robert K. Case Sludy Research: Design and Melhods. SAGE Publ. Inc. USA, 1984. p. 151.


 


[1] Adilson Manuel é um adolescente angolano residente na cidade de Luanda. O adolescente para além do canal do Youtube, possui contas no Twitter, Facebook , no Instagram , e no Snapchat


[2] Disponível em: https://www.youtube.com/channel/UCVyNIEXcz1CjKkWk-KkZTcg.


[3] Os Sobas constituem-se em estruturas organizativas forjadas ao longo dos tempos, pré-estatais e que emanam da realidade histórica, cultural, sociológica e antropológica típica de países africanos.

Publicado
2020-10-27
Como Citar
KATCHIPWI SAYLA, Bantu Mendonça. Novos sobas no contexto midiático na sociedade angolana: estudo de um caso. Anais de Resumos Expandidos do Seminário Internacional de Pesquisas em Midiatização e Processos Sociais, [S.l.], v. 1, n. 4, oct. 2020. ISSN 2675-4169. Disponível em: <https://midiaticom.org/anais/index.php/seminario-midiatizacao-resumos/article/view/1032>. Acesso em: 03 july 2024.