Acessibilidade Comunicacional: análise da presença de tecnologias assistivas em veículos de mídia brasileiros

  • Samara Leticia Wobeto Universidade Federal de Santa Maria

Resumo

Palavras-chave: Acessibilidade; Comunicação; Tecnologia Assistiva.


 


A sociedade atual é palco de diversas formas de preconceito e opressão às minorias sociais. Entre estas encontram-se as pessoas com deficiência. Não raro, elas são deixadas à margem, seja pelo não cumprimento das leis, pelo preconceito ou pelo fato de que as pessoas não sabem lidar com as diferenças. A acessibilidade é fundamental não só para a inclusão de pessoas com deficiência em todos os setores da sociedade, mas também para o desenvolvimento da consciência cidadã e social dos indivíduos. De acordo com Napolitano et al (2016, p. 128),


a acessibilidade é concebida como a possibilidade e a condição de alcance, percepção, entendimento e interação para a utilização, em igualdade de oportunidades, por qualquer indivíduo em quaisquer circunstâncias, independentemente de suas particularidades. (NAPOLITANO et al, 2016, p. 128).


A discussão em torno da acessibilidade comunicacional ainda é muito escassa, seja na academia ou mesmo na própria mídia. Quando se fala sobre o assunto, leva-se em conta a questão mais visível do tema, ou seja, a acessibilidade física e arquitetônica. É de extrema importância que rampas, elevadores, banheiros adaptados, etc, estejam presentes nas diferentes esferas sociais. No entanto, deve-se lembrar que a esfera comunicacional da acessibilidade, muitas vezes, é esquecida. Muitas pessoas desconhecem os recursos assistivos mais básicos para a comunicação, entre eles, a audiodescrição e/ou descrição da imagem, a legenda para surdos e ensurdecidos, a caixa de Libras, os caracteres ampliados e o leitor de tela. A importância em torno da ampliação e disseminação do assunto está no fato de que a comunicação humana é fundamental, pois compõe nosso dia a dia.


A acessibilidade, no Brasil, é garantida por meio de leis, decretos e portarias. Elas são fundamentais na promoção dos direitos das pessoas com deficiência, apesar do fato de que nem sempre são postas em prática. Faz-se necessário o conhecimento e a compreensão das mesmas para que possamos questionar e debater sua efetividade enquanto Direito. A Constituição Federal de 1988 (BRASIL, 1988), o Decreto Nº 6.949 (BRASIL, 2009, s. p.), o Decreto Nº 5.296 (BRASIL, 2004, p. 87), a Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência (BRASIL, 2015) e a Lei Nº 10.098 (BRASIL, 2000, p. 39) constituem algumas dessas legislações, com foco para a dimensão comunicacional da acessibilidade.


A Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência, ou Estatuto da Pessoa com Deficiência, é instituída pela Lei Nº 13.146, de 06 de julho de 2015 (BRASIL, 2015). O capítulo II, artigo 63 da Lei, que trata do acesso à informação e à comunicação, têm que “é obrigatória a acessibilidade nos sítios da internet mantidos por empresas com sede ou representação comercial no País [...]” (BRASIL, 2015).


Diante disso, percebe-se que os veículos jornalísticos analisados neste estudo - Estadão, Folha de São Paulo, G1 e Gaúcha ZH, enquadram-se na definição de sítios - ou sites, de empresas com representação comercial no país, uma vez que os mesmos comercializam um produto: a notícia. Além disso, a importância de práticas acessíveis dentro do escopo de veículos comunicacionais não está somente no cumprimento da Lei, mas no alcance aos diferentes públicos que compõem a audiência. No caso das notícias analisadas, o recorte reflete essa importância de forma mais contundente, pois as mesmas tratam sobre as pessoas com deficiência e a acessibilidade.


A partir disso, conta-se que a            acessibilidade comunicacional é fundamental no cumprimento da Lei. Além disso, os entraves e barreiras presentes na comunicação quanto à questão da acessibilidade reforçam ainda mais essa importância. De acordo com Nunes apud Schirmer (2008, p. 7), “muitas pessoas com dificuldades de comunicação podem não conseguir se comunicar com eficácia utilizando os meios de comunicação mais naturais ou comuns, como a fala e a escrita”. A fim de suprir esses entraves que permitem a efetividade comunicacional para pessoas com deficiência, existem as Tecnologias Assistivas. Refere-se a “toda aquela tecnologia desenvolvida para permitir o aumento da autonomia e independência de idosos e de pessoas portadoras de deficiência em suas atividades [...]” (TANGARIFE, 2007, p. 49). Neste estudo, iremos tratar apenas dos recursos assistivos relativos ao escopo da comunicação, que compreendem o recorte analisado. Entre as principais TA’s, estão a audiodescrição e/ou descrição de imagens, caixa de Libras, legendagem para surdos e ensurdecidos, leitor de tela e caracteres ampliados.


A análise foi feita a partir de levantamento de dados, da presença e/ou ausência de tecnologias assistivas em quatro veículos jornalísticos brasileiros: Estadão, Folha de São Paulo, G1 e Gaúcha ZH. O caminho metodológico compreendeu a escolha do recorte, a coleta dos objetos para análise por meio de seleção aleatória no Google, levantamento de número de imagens e vídeos, levantamento da presença de tecnologias assistivas nas matérias, nas imagens e nos vídeos e posterior análise.  É importante ressaltar que a TA em matérias corresponde à presença da opção de caracteres ampliados; nas imagens, à audiodescrição e/ou descrição das imagens; e nos vídeos, à audiodescrição e/ou descrição das imagens dinâmicas, à legendagem para surdos e ensurdecidos (LSE) e à caixa de Libras. A conferência da presença de audiodescrição e/ou descrição de imagens foi feita por meio do leitor de tela NVDA.


Ao contar que o objetivo do estudo é detectar a presença ou ausência de tecnologias assistivas na prática jornalística, ou seja, nos produtos midiáticos digitais viabilizados pelos referidos veículos, têm-se que o número de reportagens e/ou notícias coletadas deve compor um volume considerável, a fim de que seja possível fazer inferências sobre os materiais. Por isso, o número de objetos para levantamento e análise foi definido em 40, sendo este total dividido em quatro veículos jornalísticos diferentes, ou seja, dez notícias e/ou reportagens por veículo.


Um quesito considerado é a análise individual de cada veículo, baseado nos mesmos critérios utilizados para traçar o panorama geral: a presença de tecnologias assistivas no produto jornalístico, nas imagens e nos vídeos.


O veículo “Estadão” possui tecnologia assistiva apenas em uma matéria. A presença do recurso em vídeos é zero, e, das 22 imagens presentes, 17 possuem algum tipo de tecnologia assistiva. É interessante analisar que as imagens com recurso assistivo integram a matéria que também possui recurso assistivo.


Quanto ao veículo “Folha de São Paulo”, há muitas imagens presentes nas matérias jornalísticas, principalmente por meio de galerias. Dos três vídeos, nenhum possui tecnologia assistiva. Das 125 imagens que integram as matérias, apenas cinco fazem uso de algum tipo de recurso. Quanto às matérias, cinco delas manifestam a presença de tecnologias assistivas.


No que se refere aos veículos “Gaúcha ZH” e “G1”, a partir da análise feita, não foi possível a confecção de gráficos, uma vez que não havia nenhum tipo de tecnologia assistiva em nenhuma das matérias publicadas.


Com base na análise inicial, que contempla o levantamento de dados quanto à presença ou ausência de tecnologias assistivas nos veículos de mídia referidos, é possível contemplar uma análise mais contundente quanto ao que os dados levantados significam no contexto da acessibilidade comunicacional.


O mundo atual é, quase em sua totalidade, digital. A importância da presença de tecnologias assistivas em um meio comunicacional é reforçada, ainda mais, pelo art. 63 da Lei Brasileira de Inclusão, que obriga a acessibilidade em sites com fins comerciais, o que contempla os veículos de mídia analisados. Percebe-se, portanto, que a legislação não é cumprida.


A partir disso, considera-se importante trazer para a análise uma notícia da “Folha de São Paulo”, a qual destacou-se quanto ao conteúdo ao referir “acessibilidade” quando anuncia uma mudança em sua política editorial, que contempla, entre outras, o incremento da acessibilidade no site.


 


Figura 1. Manchete da reportagem da “Folha de São Paulo”. Fonte: FOLHA DE SÃO PAULO, 2018 .


 


A notícia, que destaca uma “navegação mais inclusiva e imagens com descrição de acessibilidade” (FOLHA DE SÃO PAULO, 2018, s.p.), ao passar pela conferência da presença de audiodescrição e/ou descrição de imagens com o leitor de tela NVDA, não apontou trazer nenhum tipo de tecnologia assistiva. A contradição entre o discurso e a ação revela-se como um fator preocupante, uma vez que o veículo coloca-se em uma posição de destaque quanto à mudança da política editorial, mas, na prática, a acessibilidade comunicacional não está presente.


Além disso, dentro dos oito temas nos quais foram divididas as matérias, algumas das manchetes que merecem destaque, em função de que integram o escopo da acessibilidade comunicacional, abordam os temas das tecnologias assistivas e da acessibilidade para pessoas cegas e surdas. A partir da análise, percebe-se que quando possuem algum recurso alternativo, é pouco e insuficiente para atingir seu objetivo. É interessante ressaltar que, ao mesmo tempo em que os objetos analisados dão importância e evidenciam a tecnologia assistiva, os mesmos são inacessíveis para o público de pessoas cegas ou com baixa visão que constituem o público sobre o qual se fala.


A partirdesse estudo inicial em acessibilidade comunicacional e da análise por meio de levantamento de dados, percebe-se que as mídias analisadas tem discurso contraditório. Há de se considerar que as 40 matérias analisadas, que possuem como pauta a acessibilidade, e, portanto, dirigem-se às pessoas com deficiência como um dos públicos, talvez o prioritário, não são acessíveis. Públicos que abrangem pessoas cegas, com baixa visão, pessoas surdas, com baixa audição, com daltonismo, dislexia ou deficiência intelectual, principalmente, não conseguirão acesso à informação em sua totalidade. Diante disso, portanto, percebe-se que produtos jornalísticos que tratam de temas relativos à acessibilidade, mas não são acessíveis, constituem uma contradição.


De acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), 23,9% da população brasileira possuem algum tipo de deficiência, o que totaliza 45.606.048 milhões de pessoas (BRASIL, 2010). Os produtos jornalísticos inacessíveis significam a exclusão de uma grande parcela de leitores do acesso àquela informação. No caso do recorte analisado, o fato revela-se ainda mais preocupante uma vez que o público excluído constitui-se como o público prioritário desse tipo de informação. Evidencia-se esse fato ainda mais quando considera-se as cinco reportagens analisadas de forma mais aprofundada. Estas, ao destacar temas como o investimento da empresa “Dell” em tecnologia assistiva, a mudança da política editorial do veículo “Folha de São Paulo”, as mudanças que contemplam acessibilidade na rede social Instagram, os aplicativos que ajudam pessoas com deficiência e o processo à cantora Beyoncé pelo site inacessível, trazem à tona a importância da acessibilidade comunicacional. Entretanto, ao mesmo tempo em que colocam o tema em pauta na sociedade, mostram-se inacessíveis ou, quando utilizam de recurso assistivo, o mesmo é insuficiente para o cumprimento de sua função: o acesso à informação para todos os indivíduos sociais e o cumprimento da legislação.


Ademais, a ausência da acessibilidade comunicacional nas redações e veículos midiáticos constitui-se um fator grave, uma vez que “[...] a mídia tem grande poder de informar as pessoas e atrair sua atenção para conteúdos que as eduquem para os Direitos Humanos [...]” (NAPOLITANO et al, 2016, p. 129), além de moldar a opinião pública a partir de suas escolhas editoriais.


Perante a proposta deste estudo, a acessibilidade comunicacional mostra-se como uma questão inerente e desafiadora diante da crescente complexidade social (VERÓN, 2004). O autor problematizou por mais de 30 anos o processo de midiatização da sociedade em que lógicas midiáticas afetam os modos através dos quais atores individuais, coletivos e instituições se relacionam. Em sua proposta de um esquema para análise da midiatização, Verón (1997), mostra que as relações entre as mídias, os atores individuais e as instituições afetam-se mutuamente e não ocorrem de forma linear. Dessa forma, observamos a necessidade de analisar a presença ou não de tecnologias assistivas em comunicação em matérias que tratam justamente da acessibilidade, para refletir sobre o processo de midiatização da sociedade e especificamente a acessibilidade comunicacional. 


 


Referências


 


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Publicado
2020-10-27
Como Citar
WOBETO, Samara Leticia. Acessibilidade Comunicacional: análise da presença de tecnologias assistivas em veículos de mídia brasileiros. Anais de Resumos Expandidos do Seminário Internacional de Pesquisas em Midiatização e Processos Sociais, [S.l.], v. 1, n. 4, out. 2020. ISSN 2675-4169. Disponível em: <https://midiaticom.org/anais/index.php/seminario-midiatizacao-resumos/article/view/1052>. Acesso em: 25 abr. 2024.