Vieiras, Cogumelos e Ciborgues: o comunicante indomesticável nas alianças interespécies recompondo a paisagem epistemológica

  • Fabiola Ballarati Chechetto Faculdade Cásper Líbero

Resumo

A transformação comunicativa dos saberes na contemporaneidade é fenômeno vivo, composicional e indômito que vem progressivamente arrefecendo o conceito tradicional de “construção social” do conhecimento.


Se a perspectiva prevalentemente sociológica do pensamento científico em Comunicação previa um ponto de origem apoiado no acúmulo de teorias nas quais subjazia a distinção social e individual pelo molde durkheimiano, agora, para pensar um “sapiens midiatizado” há que se observar como vem ocorrendo as afetações mútuas entre fatores e feitores centrais conjugados aos relegados às margens.


O estudo fenomênico do comunicar poderia então perscrutar o medial em suas tecno-lógicas mais do que decifrar mecanismos e conteúdos de seus aparatos. Estas tecnologias acontecem na conjuntura indissociável entre natureza e cultura e por isso envolvem e são envolvidas por vínculos interativos do sapiens com outros, ou seja, vínculos “multiespécies”.


Estes vínculos multiespecíficos não só veiculam uma inteligibilidade na organização informacional mas recriam e alteram o ambiente do qual nós, “sapiens midiatizadxs” somos uma das partes.  


A ideia foi observar, discriminar, comparar e analisar a coerência entre alguns traços comunicantes em três estudos de caso de duas autoras e um autor dos sciences and technology studies (CALLON, 1995; HARAWAY, 2000 [1985]; TSING, 2015) que com forte viés socioantropológico, mas também político-filosófico, veem considerando a variabilidade das espécies dos seres como alteridade legítima e em pé de igualdade na participação dos processos sociais, e este modo de pensar, ao nosso ver, pode ser propiciamente relevante para conhecer as transformações dos processos comunicativos.


A pesquisa começou por desconfiar de certos traços nos casos mencionados, aparentemente “acidentais” se olhados por uma construção social do conhecimento estabelecida cientificamente, mas estas mesmas pistas se tornam “essenciais” para a investigação do propriamente comunicacional na medida em que, redimensionando o humano na “relação” com os demais seres, passa a evidenciar uma equidade de forças em uma espécie de “coordenação” na troca entre as diferenças. 


Propomos perceber quais e como controvérsias e consequências selecionadas fazem emergir o medial comunicante em três fluxos: a) veículos e vinculação como rastros para ver b) as manobras de negociação e tradução entre participantes tendo c) a hibridação como processo autocatálise.   


Um diálogo situacional que relê conceitos da sociologia e antropologia da ciência conforme interesses aderentes à angulação epistemológica em Comunicação é um convite à falseabilidade, incapaz de estabelecer uma lei geral.


A postura científico-metodológica neste estudo se coloca na interface com estes outros saberes, testável junto com os pressupostos levantados, pois seu objeto não é um produto transmissor de mensagens, mas próximo ao que Marcondes Filho (2019) atribui como “medial”.


Neste sentido toma-se distância das pesquisas estritamente dedicadas ao “mediático”, ou seja, aos meios de comunicação de massa, e evitaremos ainda a derivação ao “midiático”, que segundo Marcondes Filho (2018, l. 1655) segue na intenção de positivar a ação mediática.


Esta distância de um objeto mediático, frequentemente abordado no campo da Comunicação, é arbitrária embora não excludente e foi impulsionada por um senso de emergência em pautar agentes esquecidos, todavia cruciais para compreendermos um cenário ainda apocalíptico ou integrado ao lidar com os meios e que, tanto em um caso como noutro, aparta o natural e o social como se não fossem interagentes e interdependentes na mesma comunidade.


Com a consciência crítica oposta a um holismo que dificultaria o estudo científico de dado objeto pela demasiada abrangência, e por congruência, contrário à comodidade do termo que tudo parece resolver, a “interdisciplinaridade”, na justaposição entre domínios do saber diversos entre si, não contemplaremos tudo nem evitaremos os constrangimentos epistemológicos que este comunicacional indomável constantemente propõe.


Este risco é aberto às objeções e possibilita, talvez, tentativamente, um pequeno salto retrodutivo a ser colocado a prova. Nossa ideia é reativar fatores que sempre estiveram presentes nas relações comunicativas e midiatizadas de infinitas maneiras, quase nunca cogitados como dignos de contribuições à ascensão das ideias no campo comunicológico.


Sobremaneira, este intricado universo contemporâneo requer uma confluência de epistemologias à altura do desafio de compreensão atual, um modo sistêmico, pouco regular e caleidoscópico de pensar o pensamento. 


 


 



  1. O comunicante em três episódios das alianças sóciotécnicas


 


No ensaio político-etnográfico de Anna Tsing (2015), a autora rastreia a coleta de cogumelos indomesticáveis, iguaria de altíssimo valor para contrastar uma história da “domesticação de mulheres e de plantas”. (TSING, 2015, p.180).


Os acordos ou desavenças da natureza com a cultura levam a pesquisadora a reparar, seguindo as redes, uma complexa ecologia de afetos, capitais, comércio e infere assim questões que tocam raça, dominação, alienação e implicações dos vínculos com a fetichização do lar e a racionalidade econômica.


Conexões raramente trabalhadas pelas pesquisas teórico-epistemológicas da Comunicação, oferecem a oportunidade de escapar ao binômio causa-efeito, para observar como a comunicação interfere nas formas de conhecimento e gestão de recursos, para compreender si mesma circunscrita ao capitalismo-tardio e suas deformações.


Nas palavras da autora, “a coleta de cogumelos nos permite ver as costuras do capitalismo global” (TSING, 2015, p. 194). Localizar indícios do medial nestas “costuras” são subsídios para depreender uma permeabilidade dos fenômenos comunicacionais a partir do posicionamento político gerador do comunicar que, por sua vez, engendra a cultura e por ela é reconstituído e modificado.


Se a natureza humana é constituída pela relação tanto biológica quanto sociocultural entre espécies, isso acaba com a falsa sensação de que somos excepcionais pois enredados em teias de domesticação interdependente.


Indagar sobre o medial entre selvagem e domesticado pode acenar à chance de conhecimento como “estranha aventura entre incertezas” (FERRARA, 2013, p. 61) no intento de substituir o paradigma explicativo da ciência antropocêntrica por uma articulação provisória e questionadora daquele legado.  


Para abandonar as distinções apriorísticas entre social e natural, há que se considerar um “agnosticismo do observador”, uma “simetria generalizada” e “associações livres” como princípios metodológicos tratados criticamente por Callon (1995) em seu estudo sociológico do conhecimento sobre a tentativa de domesticação das vieiras, nome científico Pecten maximus, moluscos marinhos apreciados como alimento de alto valor monetário e refinamento gastronômico, da Baía de St. Brieuc envolvendo pescadores, pesquisadores e cientistas.


No estudo, as identidades oscilam segundo as próprias relações que estabelecem, o tipo de comunicabilidade ou incomunicabilidade acontecidos, e a escolha de porta-vozes intermediários que possam traduzir uns aos outros em diferentes momentos.


Esta postura paradigmática pressupõe que os lugares identitários dos atores sociais não estão dados de partida, o “contexto” é conceito falho e insuficiente já que as negociações ainda estão em curso, o que significa não só observar relações de poder como já faz a Sociologia, ou propor um quadro comparativo entre culturas como a Antropologia, mas para Comunicação, examinar probabilisticamente os próprios mecanismos comunicacionais e portanto estéticos e políticos em plena atividade quando manifestados pelo “interesse”, negociação, sedução, persuasão ou “como manter os aliados no seu lugar” (CALLON, 1995, p.266).


O leque estratégico usado pelos agentes é ilimitado e, no decorrer dos estudos, o “interesse” é construído por concessões e pelo ingresso de agentes inesperados como as correntes marítimas que dispersaram as redes, tecnologias humanas para a retenção das larvas das vieiras, o que desconfigura uma conformação para, imediatamente, configurar outra. O conhecimento comunicacional parece conter o cumulativo da conservação histórica e a subversão constante de associações repentinas.


A camada ciborgue, manifestada por Haraway (2000 [1985]), plasma organismo e máquina como atitude política de transformação da história e aqui nos interessa salientar e problematizar o terceiro fator da “sigla C³I (comando-controle-comunicação-inteligência)”, uma teoria das operações militarizadas. (HARAWAY, 2000 [1985], p.37).


A autora menciona ciências da comunicação relacionadas às biologias modernas por uma operação comum, “a tradução do mundo em termos de um problema de codificação” em heterogeneidade que pode ser “submetida à desmontagem, à remontagem, ao investimento e à troca”. (HARAWAY, 2000 [1985], p.64).


Haveria assim uma ambivalência de funções: 1) o perigo perene e uma capacitação pela disputa de outros significados ressoados pelo processo mediativo mulher-máquina, 2) as “semiologias ciborguianas” (HARAWAY, 2000 [1985], p.62), ou outras formas apresentadas pelo poder e prazer em sociedades mediadas pela técnica e 3) uma cultura científica que coloca dicotomias ideologicamente em crise.      


 



  1. Estranhar o entremeamento: epistemologias cruzadas


 


Entendendo com Braga (2019, l. 2576) que as regras de interação comunicacionais dificilmente são enquadradas num esquema nomotético “pois dependem de inferências conjunturais”, nossa premissa evoca a questão “conjuntural” para poder identificar os traços diferentes de comunicabilidade nas relações sociotécnicas estudadas por Callon (1995), Tsing (2015) e Haraway (2000 [1985]).


Cada caso apresenta um tracejado de singularidades: os actuantes na pesca e ciência, os fungos e o capital, as classes e regulações, a mulher e o imaginário desconstrutor de identidades e transformador de mundos.


Suas complementariedades perfazem similitudes do comum justamente nas rugosidades do conhecimento comunicológico, ou seja, um saber que pode amparar sua especificidade provisória nas interações sociotécnicas, sem que haja uma redução engajada no social ou no tecnológico, tendente a pôr em questão o fortalecimento de uma emancipação ou autonomia científica.


Ao mesmo tempo, entre os três diferentes grupos conceituais que emergiram do empírico trabalhado teórico-metodologicamente pelos autores mencionados, há um eixo particularmente oportuno para estudar as ciências do comunicacional, uma afetação multilateral confrontando, desquitando e conciliando os particulares e os universais. 


 



  1. O comunicar, conhecimento indomesticável


 


A categorização tripartite sobre o conceito de midiatização nos últimos vinte anos organizada por Martino (2019): “articulação”, “mídia como ambiente” e “práticas sociais” faz perguntar qual é a inscrição de uma investigação sobre o “medial”, a partir do conjunto multiespécie estudado nos três episódios.  


A questão articulatória é sublinhada junto com a mídia como ambiente, sendo, porém, a mídia um meio correspondente ao próprio ambiente e não subsumido a este.


As práticas sociais, inegavelmente parte dos observáveis, aparecem como componentes em fluxo, alteráveis em decorrência do medial.


As alianças interespécies supõem uma transitividade e, por assim dizer, exigem complemento. Quando Haraway nomeia as “espécies companheiras”, o complemento remete ao seu aspecto associativo.


A hipótese aventada por Sodré (2007) de que “a midiatização não nos diz o que é a comunicação e, no entanto, ela é o objeto por excelência de um pensamento da comunicação social na contemporaneidade” é argumentação atendível e denota a separação entre ser fenomenológico e objeto científico.


Todavia, seria necessário problematizar a centralização das mudanças socioculturais apoiada no “funcionamento atual das tecnologias da comunicação” (SODRÉ, 2007, p. 17). O encalço começa no “funcionamento” que aparenta focalizar para que servem, a função, a engrenagem das tecnologias.


 Por tecnologias “da comunicação”, com frequência entra-se no terreno das mídias de massa e mídias digitais.


Se de fato elegem os meios de comunicação, chamados de massa como o rádio ou a televisão ou então as novas mídias sociais digitais desde a web, a investigação sobre mediatização procede.   


Mas se este funcionamento contemporâneo se referisse ao comunicar distinto daquele estritamente representado pela técnica como aparelho, ao comunicar inerente às conjunções dos seres com a tecnologia no potenciamento de uma aliança que envolvesse tanto o maquínico da cognição humana, quanto o pessoal e coletivo do cibernético na natureza, esta ótica agregadora analisada com similar rigor, provocaria revisão de acepções do conhecido.


Deste jeito experimental, assim como Tarde ousa revisar o infinitesimal leibniziano propondo a abertura dos seres mínimos até então fechados e ignorados, para hipnotizar a prevalência de uma “possessão recíproca”, em relação à “possessão unilateral” (TARDE, 2018, p. 120), talvez seja animador deslocar o eixo epistemológico das “tecnologias da comunicação” para o que há de comunicante entre as naturezas tecnológicas das culturas.


Este comunicante instiga outro princípio de organização no revés da tecnologia calcada na ancoragem das mídias reduzidas aos objetos técnicos e a serviço da transmissão humana e suas práticas sociais. Trata-se aqui de intersectar uma pluralidade de saberes tecno-culturais, recombinando os componentes da equação para reconhecer inclusões inadiáveis que constituem variáveis epistemológicas do objeto em estudo. Esta sapiência midiatizada e impreterível nasce da adaptação das espécies às cisões sociais em circunstâncias inesperadas, mas que, pela invenção de alternativas de vida, as fazem resistentes às simples trocas afeitas à comutação de circuitos ponto a ponto.

Publicado
2020-10-27
Como Citar
CHECHETTO, Fabiola Ballarati. Vieiras, Cogumelos e Ciborgues: o comunicante indomesticável nas alianças interespécies recompondo a paisagem epistemológica. Anais de Resumos Expandidos do Seminário Internacional de Pesquisas em Midiatização e Processos Sociais, [S.l.], v. 1, n. 4, out. 2020. ISSN 2675-4169. Disponível em: <https://midiaticom.org/anais/index.php/seminario-midiatizacao-resumos/article/view/1090>. Acesso em: 19 abr. 2024.