Além da imagem: a narrativa interativa e a polifonia intertextual em Black Mirror

  • Luciano Marafon UTP
  • Denize Araujo UTP

Resumo

A narrativa cinematográfica já passou por grandes revoluções desde o início do cinema falado até a chegada da internet. A inserção dos serviços streaming trouxeram possibilidades antes inexistentes, tanto ao cinema quanto para a televisão. Possibilidades que transcendem a montagem e a narrativa, uma convergência que transformou o espectador em também construtor da história. Para Denis Porto Renó (2007), o público já não é mais o mesmo, o que a autora chama de “espectador-usuário”, um público que está sempre disposto a “navegar” pelas tecnologias oferecidas. 


Nesse sentido, o surgimento da Netflix renovou a ideia de programação televisiva e, até mesmo, cinematográfica. A Netflix tem como costume lançar todos os episódios de uma série de uma só vez, o que alterou a forma de consumir narrativas serializadas e a forma de consumir o cinema, já que é possível pausar, adiantar, trocar e, principalmente, interagir com a narrativa.


O filme Black Mirror: Bandersnatch (2018) é um grande exemplo de interatividade ocasionada pela evolução das possibilidades tecnológicas. Com roteiro de Charlie Brooker e direção de David Slade, o filme-episódio narra a história de Stefan, um jovem dos anos 1980 que tenta criar um jogo de videogame inspirado em um livro. Esse filme-episódio é o primeiro conteúdo interativo para o público adulto da Netflix. 


Já no início do filme um breve tutorial explica ao espectador como funciona a estrutura interativa. Em cada momento de escolha há duas opções e aproximadamente dez segundos para uma decisão. O espectador-usuário pode chegar a cinco finais diferentes, impactando sua experiência fílmica e, também, o tempo que a história terá.  Porém, nem toda escolha feita chega a um final. Por vezes a narrativa caí em um “beco sem saída” e somos obrigados a voltar a determinado ponto. Contudo, isso se aproxima da narrativa de jogos de videogame. 


A interatividade, segundo Pierre Lévy (1999 apud Cannito, 2010) pode ser categorizada em algumas formas, como: a personalização da mensagem recebida pelo usuário, a reciprocidade onde um dispositivo permite várias comunicações, a virtualidade que permite a passagem da mensagem em tempo real, a implicação e a telepresença. Segundo Lev Manovich (2007), a interatividade pode apresentar diversas funções, como simples divisões abertas ou fechadas, estruturas complexas e o que o autor chama de “interatividade arbórea”, identificada no filme Bandersnatch. Essa interatividade é dividida como galhos de uma árvore, e acontece a partir de opções na tela do usuário em forma de menu. Nesses casos, o espectador cria diversos níveis de narrativas, propostas por ele mesmo, dando voz ativa a quem está consumindo. 


A noção de videogame que a interatividade traz mescla a montagem e a narrativa do filme, já que o protagonista é um desenvolvedor de games o que, assim como em um jogo, dependendo de suas escolhas, pode render um Game Over, obrigando a narrativa a voltar a determinado ponto. Para Berenice Santos Gonçalves et. al. (2019) “[...] é possível perceber que, na estrutura do roteiro, os links presentes têm a função de fazer a história seguir de uma cena à outra, criando uma narrativa imbricada, com múltiplas possibilidades e diversos finais.” 


Esse tipo de narrativa desconfigura o cinema clássico ao fazer com que o espectador exerça funções dentro do filme. Dessa forma, ele pode ser o montador do filme. “No cinema clássico os saltos narrativos aconteciam pelos cortes da montagem, já nos filmes e vídeos interativos são realizados também através de links estrategicamente posicionados no decorrer da história” (Gonçalves et. al. 2019, p. 78). Ou seja, em um filme interativo a narrativa é fragmentada, e sua linha condutora principal é complementada por outras narrativas de outros pontos de vista, ou de variadas possibilidades de continuidade, o que para Jan Simons (2008) é uma narrativa complexa comparada ao cinema clássico. 


Já em USS Callister o que percebemos é a construção de uma polifonia intertextual. O episódio foi lançado em 2017 e conta a história de um programador que desenvolveu um jogo de realidade virtual a partir do DNA de seus colegas de trabalho, criando simulacros virtuais.


A montagem do episódio USS Callister subverte a noção tradicional de passado, presente e futuro, criando um quadro de convergências espaciais e temporais (Jenkins, 2009) ao desenvolver um diálogo intertextual (Kristeva, 1974) com Star Trek, unindo passado e presente, com as diversas vozes de personagens presenciais e personagens clonadas que ao mesmo tempo estão em seu local de trabalho e na nave espacial criada por Robert Daly, o protagonista. Essa polifonia de vozes (Bakhtin, 2008) extrapola noções de mídias gerando uma estética pós-mídia, referenciada por Manovich e Weibel e já parcialmente anunciada por Félix Guattari.


A essência da polifonia consiste justamente no fato de que as vozes, aqui, permanecem independentes e, como tais, combinam-se numa unidade de ordem superior à da homofonia. E se falarmos de vontade individual, então é precisamente na polifonia que ocorre a combinação de várias vontades individuais, realiza-se a saída de princípio para além dos limites de uma vontade. Poder-se-ia dizer assim: a vontade artística da polifonia é a vontade de combinação de muitas vontades, a vontade do acontecimento. (Bakhtin 2008, p. 23)


 


Enquanto o mundo virtual conta com a voz uníssona de Daly, no outro mundo as vozes são dissonantes e independentes da sua, cada qual com seu enfoque e ponto de vista, colaborando para um final que expressa a “vontade artística da polifonia” de Bakhtin.


Os conceitos de Bakhtin, de monologismo, dialogismo e polifonia, foram cunhados em suas análises concernentes a um texto, seja o de Dostoiévski ou o de Tolstoi. Nessa nossa análise, para adaptar os conceitos, estamos considerando o episódio USS Callister também um só texto dividido espacialmente e temporalmente em dois mundos.


A tecnologia digital transformou as antigas maneiras de se comunicar, exigindo um novo olhar e uma nova forma de proceder. USS Callister, se analisado por este ponto de vista, recupera Star Trek, o que pode ser definido também com o conceito cunhado por Denize Araujo (2007), de “estética da hipervenção”, sendo que hiper seria uma adaptação da hiperrealidade de Baudrillard (2004) e venção seria relacionado com intervenção. Há realmente uma intervenção em USS Callister, em dois sentidos; no sentido da intertextualidade e no sentido da dualidade tempo-espaço. Quanto ao conceito de hiperrealidade, Baudrillard (2004) cita que é a simulação de algo que nunca existiu realmente, o que explica a polifonia intertextual do episódio de Black Mirror.  


Esta propriedade digital de simulação da mídia é também analisada por Peter Weibel (2012) como “pós-mídia”, que sugere que o código secreto por trás de todas essas formas de arte é o código binário do computador e a estética secreta consiste em regras e programas algorítmicos.


O referencial teórico selecionado para a análise deste episódio USS Callister da série Black Mirror acompanha também a mesma subversão temporal, unindo passado, presente e futuro, como a fita de Moebius, iniciando temporalmente com o dialogismo bakhtiniano, acoplado ao conceito de intertextualidade de Kristeva (1974), constituindo uma polifonia intertextual, que caracteriza o episódio, e que vai se unir aos conceitos de pós-mídia de Guattari, Manovich e Weibel e ao conceito de convergência das mídias de Jenkins e de hiperrealidade de Baudrillard. A condição pós-mídia explica as tecnologias digitais expandidas de Black Mirror.


Por fim, o corpus em análise neste estudo compartilha características como a desconstrução do espaço-tempo, a polifonia intertextual seja de emissores e receptores ou de personagens em eras diversas, além da distopia. Segundo Russell Jacoby (2007, p. 33), enquanto a utopia é geralmente algo inatingível, a distopia busca o inusitado.


Em relação à montagem pós-mídia, nosso referencial é de Félix Guattari, Lev Manovich e Peter Weibel. Já em 1994, Marshall McLuhan cunhou uma frase marcante, ao argumentar que “o meio é a mensagem”. Se pensarmos nessa direção, podemos considerar que as montagens das mídias digitais são, sem dúvida, relevantes para nossa pesquisa e análise de nosso corpus. Manovich, em seu ensaio sobre a estética pós-mídia, sugere que a história da arte e a prática da arte devem ser atualizadas através dos novos paradigmas desenvolvidos pelas mídias digitais, considerando as especificidades de software (Manovich, 2001). Peter Weibel (2012), assim como Lev Manovich, afirma que hoje em dia não há mídias dominantes, uma vez que todas elas estão dialogando umas com as outras, asserção que corrobora com a convergência das mídias proposta por Henry Jenkins (2009), que sugere que “a convergência envolve uma transformação tanto na forma de produzir quanto na forma de consumir os meios de comunicação” (Jenkins, 2009, p. 42), o que se aplica em nosso estudo, especialmente no caso de Bandersnatch.


Os dois conteúdos fazem parte da mesma série televisiva. Portanto, podemos dizer que a série em geral constrói em seus episódios linguagens diferentes que conversam entre si. Aqui, podemos perceber que as duas narrativas acompanham dois programadores e seus jogos. Uma trazendo a interatividade em seu desenvolvimento e outra discutindo a polifonia e a intertextualidade em conteúdos audiovisuais.

Biografia do Autor

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Graduado em Comunicação Social - Publicidade e Propaganda, especialista em intermídias visuais - cinema e mestrando em comunicação e linguagens, bolsista CAPES-PROSUP.

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Dra Denize Araujo - Chair of the Visual Culture WG-IAMCR - PhD Literatura, Cinema e Artes UCR -University of California, Riverside, USA - Pós-Doutorado Cinema e Artes UALg - Universidade do Algarve - Portugal
Docente PPGCom-UTP, Coordenadora Pós Intermídias, GP CIC-CNPq e GT Imagem Compós, Curadora ANIMATIBA e FICBIC Festival de cinema da Bienal de Arte de Curitiba, BR; Diretora do Clipagem - Centro de Cultura Contemporânea.

Publicado
2020-10-26
Como Citar
MARAFON, Luciano; ARAUJO, Denize. Além da imagem: a narrativa interativa e a polifonia intertextual em Black Mirror. Anais de Resumos Expandidos do Seminário Internacional de Pesquisas em Midiatização e Processos Sociais, [S.l.], v. 1, n. 4, out. 2020. ISSN 2675-4169. Disponível em: <https://midiaticom.org/anais/index.php/seminario-midiatizacao-resumos/article/view/1142>. Acesso em: 26 abr. 2024.