Reflexões sobre o papel do jornalismo comunitário na cotidianidade para constituição de pensamento crítico

  • Cinthya Pires Oliveira UFF

Resumo

Em essência, o desenvolvimento do jornalismo comunitário possui como proposta apresentar olhar local da realidade e da vida cotidiana de um grupo. Ao se constituir a partir desse recorte geográfico local, naturalmente instâncias sociais, políticas e econômicas se reconfiguram como valor-notícia e possibilitam diferentes formas de construção do conhecimento.


Pensar as estruturas cotidianas de comunicação que possam se cristalizar pelas práticas jornalísticas comunitárias para viabilizar movimentos de transformação, também envolvem o exercício de pensar continuamente a construção social do conhecimento. Engloba, desta forma, a atuação de atores em rede para desenvolver mecanismos que possibilitem, em algum grau, o distanciamento da voz hegemônica da mídia corporativa, do estabelecimento de novos enquadramentos e da publicização de questões até então não ditas.


Mesmo diante do cenário hegemônico, alternativas podem ser traçadas e apreendidas das estruturas sociais cotidianas, das mudanças espaço-temporais, da tecnicidade e dos modelos de comunicação que se estabelecem nos espaços comunitários.


No entanto, é preciso refletirmos tanto sobre os impactos gerados pelas plataformas de redes sociodigitais no jornalismo comunitário quanto sobre as peculiaridades desses processos e experiências que adquirem novas condições de produção e distribuição de conteúdos, conforme temporalidades e espacialidades dos ambientes digitais.


Os processos e fluxos de distribuição de conteúdos, assim como a manutenção de territórios de forças amplificadoras da influência de instituições, representam eixo norteador para a atuação das empresas de comunicação no século XXI, quando o suporte de plataformas e tecnologias são utilizadas para potencializar a escala do negócio. Em contrapartida, alternativas comunitárias de jornalismo buscam reacomodar sua atuação na escala de influência e envolvimento dos indivíduos, porém estão sujeitas às regras proporcionadas pela tecnologia na era do capitalismo dos dados.


Mesmo diante da potencialidade do jornalismo informativo moderno (GENRO FILHO, 1987), é inegável que discursos e negociações adquirem maior complexidade com a reconfiguração do espaço e do tempo à medida que novas mídias e tecnologias são estabelecidas. Assim, as “asperezas” da prática jornalística parecem ser exponencialmente evidenciadas, enquanto debates discorrem o possível distanciamento entre a construção crítica do conhecimento e os aspectos inerentes à produção de notícias.


Para Gramsci, a proximidade entre os intelectuais e o povo é uma proposta capaz de difundir conhecimento, reconfigurar o senso comum e forjar uma práxis que a partir do pensamento crítico viabilize a ação. O autor marxista, que também atuou como jornalista ao longo de sua carreira profissional, reforça que todos os homens são intelectuais, embora nem todos desempenhem a função de intelectuais (GRAMSCI, 2001, p.18). Crítico árduo do jornalismo e, também, apaixonado pelo potencial da profissão, Gramsci elaborou análises aprofundadas sobre o papel dos intelectuais para a mobilização política. Escritos há quase 90 anos, os estudos de Gramsci proporcionam contribuições para o campo, sobretudo para o jornalismo alternativo comunitário.


Cabe salientar que política e economia são duas faces da mesma moeda onde Estado, mercado e sociedade (DUARTE,2009) atuam como atores inseridos na construção do tecido social. E as práticas sociais rotineiras adquirem dimensões diferenciadas com a convergência e o uso de sites de redes sociais.


Nesse cenário de convergência midiática e suposta multiplicação de vozes, adquire maior importância o desenvolvimento de estudos sobre o jornalismo comunitário enquanto prática que proporcione identificação de caminhos a serem percorridos para a construção de conhecimento e de pensamento crítica da sociedade.


Enquanto fonte de expressão de suas relações sociais, o indivíduo em diálogo com a(s) comunidade(s) pode encontrar no jornalismo a configuração de estrutura comunicacional que a partir do cotidiano rompa com a alienação. Embora no cotidiano se configure a alienação, há também “margens de movimento” (Heller, 2000) que possibilitam o rompimento com o estado de inércia.


A alienação direcionada a algo, assim como o desconhecimento ou o desinteresse das relações estabelecidas impactam no desenvolvimento da humanidade. Porém, se a “vida cotidiana, de todas as esferas da realidade, é aquela que mais se presta à alienação” (HELLER, 2000, p.37), por outro, “embora constitua indubitavelmente um terreno propício à alienação, não é de nenhum modo necessariamente alienada” (HELLER, 2000, p.38) uma vez movimentos podem ocorrer nas atividades de pensar e agir.


Movimentos que podem ser encadeados pela mídia, enquanto ordenadora social, mas que precisam estar concatenados com a perspectiva crítica da sociedade e com a percepção do estabelecimento de campos de disputas por meio dos discursos. Aqui esclarecemos o motivo pelo qual há dificuldades de direcionar como elemento central para essa construção social o jornalismo hegemônico desenvolvido por grupo privados que monopolizam a comunicação.


Sob essa perspectiva, os interesses do jornalismo da mídia corporativa não coadunam com a possibilidade de constituir campo crítico de reflexão a partir da cotidianidade do comunitário. Cabe também destacar que, movido por interesses que muitas vezes se distanciam da comunidade, até mesmo o jornalismo que carrega a “etiqueta” de comunitário precisa superar amarras que o fazem tropeçar e se distanciar do bem comum.


O jornalismo comunitário com viés crítico poderá funcionar metaforicamente como “ponte” para os movimentos e para a “suspensão do cotidiano” em que será essencial o envolvimento a partir da reflexão crítica da comunidade. Trata-se, portanto, em não creditar à comunidade a capacidade de “libertação” ou “instauração da autonomia”, mas de considerar caminhos para a constituição de um jornalismo em que o envolvimento dos indivíduos e a reflexão crítica sejam elementos promotores da mudança social.


Como afirma Peruzzo, veículos que se definem como “comunitários” sem alinhamento com esses ideais específicos do coletivo, “ao invés de contribuírem para o desenvolvimento de comunidades, acabam por reproduzir mecanismos de dependência e alienação” (PERUZZO, 2006, p. 20).


De modo adicional, se por um lado há a tradicional multiplicidade de canais de comunicação geridos pela iniciativa privada, por outro, nos últimos anos, é possível acompanhar a proliferação de sites de redes sociais (SRS) que supostamente projetam equilíbrio de vozes e “visões críticas” da realidade. De modo irônico, é como se, numa distorção dos pensamentos de Gramsci e sem compromisso com o pensamento crítico, todos os homens pudessem produzir notícias, distribuí-las e se auto promover como “cientista político”.


Por outro lado, como as plataformas online de comunicação permanecem sob gestão de grupos internacionais e os mecanismos de visibilidade das mensagens publicadas são conduzidos por práticas de mercado, apostar no determinismo tecnológico para evidenciar o equilíbrio das relações é uma falácia.


Se a concentração de poder político e econômico permanece como elemento norteador das práticas comunicacionais, o desequilíbrio das relações se recrudesce. Logo, mesmo diante de todos os esforços estabelecidos, ainda são reduzidas as possibilidades de envolvimento da sociedade com iniciativas comunitárias (PERUZZO,2007). Mas, dada a própria prerrogativa de constituição do jornalismo comunitário, compreendemos que seja possível percorrer de modo potencial condições que se estabeleçam como pilares para a constituição do pensamento crítico da sociedade em relação às práticas comunicacionais.


Diante do breve contexto apresentado, propomos lançar luz sobre a construção social do pensamento crítico por meio do  jornalismo comunitário a partir das observações de Genro Filho (1987)  e de Heller (2000) para conjecturarmos como a prática jornalística comunitária pode contribuir com a construção crítica da sociedade, com a ampliação da participação social e, consequentemente, com o dispêndio de interesse dos indivíduos em relação às notícias.


Relembramos que todos os homens são intelectuais (Gramsci, 2001) e que, embora imbuídos da capacidade de “suspensão do cotidiano” (Heller, 2000), nem todos a realizam continuamente e percebem que os fatos devem ser compreendidos a partir da perspectiva da totalidade social.


Nesse sentido, os jornalistas possuem atuação essencial para estimular o desenvolvimento do conhecimento e do pensamento crítico junto ao público. A busca pela melhor compreensão dos fatos e pela reflexão sobre o senso comum se configuram como instrumento catalizador da transformação social e do estabelecimento de níveis de participação, ou contestação, em relação às práticas comunicacionais alternativas e hegemônicas.


A proposta deste artigo não pretende esgotar o assunto, mas proporcionar reflexões iniciais sobre a práxis jornalística e sua relação com a cotidianidade para o desenvolvimento de pensamento crítico por meio do jornalismo comunitário.


No cenário de convergência midiática e suposta multiplicação de vozes, o jornalismo comunitário pode se posicionar como instrumento de transformação social ao proporcionar, a partir da cotidianidade, diálogo, reflexão sobre o senso comum e sistematização do pensamento crítico. Um longo e grande percurso a percorrer, mas que pode ser muito significativo inclusive para o campo jornalístico em geral.


Nesse sentido, conforme pesquisa em andamento, cabe exploração intensiva e análise aprofundada sobre as experiências cotidianas e os níveis de participação possibilitados pelo jornalismo comunitário, assim como os rastros produzidos, a partir de mediações e mecanismos que colaborem com a construção do conhecimento e a consciência crítica do público.


Esta proposta de artigo faz parte de pesquisa em andamento que tem como referencial teórico a abordagem crítica sob a luz da Economia Política da Comunicação e por meio de aproximações com abordagens proporcionadas pelos Estudos Culturais. compreendemos que seja possível evidenciar as estruturas estabelecidas por conexões e fluxos comunicacionais nas plataformas de redes sociodigitais como oportunidade diferenciada para avultar e desmistificar relações de poder instituídas e perpetuadas pelas disputas decorrentes do uso de espectro radiodifusor, entre corporações midiáticas e iniciativas comunitárias.

Publicado
2020-10-27
Como Citar
OLIVEIRA, Cinthya Pires. Reflexões sobre o papel do jornalismo comunitário na cotidianidade para constituição de pensamento crítico. Anais de Resumos Expandidos do Seminário Internacional de Pesquisas em Midiatização e Processos Sociais, [S.l.], v. 1, n. 4, out. 2020. ISSN 2675-4169. Disponível em: <https://midiaticom.org/anais/index.php/seminario-midiatizacao-resumos/article/view/1192>. Acesso em: 19 abr. 2024.