Um Telejornal midiatizado em tempos de Covid-19:

uma análise das estratégias narrativas do “Jornal das Dez” na cobertura da pandemia

  • Pedro Augusto Silva Miranda Universidade Federal de Juiz de Fora

Resumo


  1. Introdução


 


Em setembro de 2020, a televisão e o telejornalismo no Brasil completaram 70 anos. No dia seguinte à primeira transmissão feita pela TV Tupi no país entrava no ar a primeira experiência televisiva brasileira na transmissão de notícias, chamava-se “Imagens do Dia”. O programa televisivo jornalístico era exibido entre 21h30 e 22h, ao vivo, em preto e branco, direto de São Paulo (SP). E só terminava quando alguns dos fatos do dia haviam sido comentados.  O improviso ditava o tom do programa, que era escrito minutos antes da transmissão pelo redator e apresentador Ruy Rezende. Em termos de imagem e de edição o noticiário contava com poucos recursos e uma equipe reduzida (Rezende, 2000). O telejornal foi exibido durante três anos, sendo substituído pelo “TeleNotícias Panair”, patrocinado pela extinta empresa de aviação (Ankerkrone, 2001).


Setenta anos depois da primeira experiência televisiva na transmissão de notícias, o telejornalismo e a televisão ainda são as principais formas de acesso dos brasileiros às notícias e informação, é o que apontam os dados de duas pesquisas. De acordo com a última edição da Pesquisa Brasileira de Mídia (PBM), de 2016, da Secretária Especial de Comunicação Social da Presidência da República, cerca de 90% dos brasileiros se informam pela TV. Desse percentual, 63% tem o meio como a principal fonte de informação (Secom, 2016). Em março de 2020, início da pandemia da Covid-19 no Brasil, uma pesquisa realizada pelo instituto Datafolha e publicada pelo jornal Folha de S. Paulo apresentou dados que reforçam a relevância da TV para a população brasileira, sobretudo, nesse período de crise sanitária. Em meio a pandemia do novo coronavírus, cerca de 61% dos entrevistados na pesquisa declararam confiar nas informações sobre o tema exibidas nos programas jornalísticos da TV (Marques, 2020). O percentual de confiança na TV é cerca de seis vezes maior do que os dados apresentados com relação às informações advindas dos aplicativos WhatsApp (12% dizem confiar) e Facebook (12% dizem confiar).


Pesquisadores da área e a crítica especializada creditam aos períodos de crise o aumento na confiança e na busca pelos meios tradicionais de comunicação e no jornalismo profissional. A cobertura jornalística de importantes fatos políticos, econômicos e sociais no Brasil e no mundo ocorridos nos últimos anos (entre alguns, o impeachment da presidente Dilma Rousseff, as ações da operação Lava Jato, a recessão econômica brasileira, o governo de Donald Trump nos EUA, a ascensão da extrema-direita no Brasil e na Europa e, atualmente, a pandemia da Covid-19), indicaram a crescente demanda por conteúdo jornalístico em todo o tipo de suporte/dispositivo (telas, impresso, espectro eletromagnético), nesses momentos que requerem maior perícia. Um exemplo que corrobora com essa análise ocorreu nos Estados Unidos após a eleição de Donald Trump para presidência em 2016, quando jornais como The New York Times e The Wall Street Journal registraram aumento expressivo nas assinaturas nos meses seguintes ao pleito (Folha, 2016; Exame, 2017).


O advento das tecnologias digitais, redes e dispositivos móveis têm engendrado outros modos de consumo, circulação e experiência da TV e de conteúdos jornalísticos audiovisuais com a multiplicação das plataformas e das telas (Santaella, 2014). Esse cenário de convergência, nos termos de Jenkins (2008), e de midiatização implica em mudanças que vão além da tecnologia passando por questões culturais, que impactam o modo como as tecnologias existentes, a indústria, os gêneros, os realizadores e o público se relacionam. Pavlik (2008) corrobora com esse pensamento ao indicar que a era digital remodela a paisagem do jornalismo de muitos modos, da estrutura passando pelo conteúdo dos textos até as práticas profissionais. Boczkowski (2004) é ainda mais profundo ao apontar que essas mudanças são significativas e que implicam na natureza e na função do jornalismo na sociedade pós-moderna, além de impor desafios para a identidade da profissão e das organizações jornalísticas. A midiatização e a convergência se definem, portanto, através desse fluxo de conteúdos entre múltiplas plataformas, que impacta diretamente as rotinas de produção, a circulação e a oferta de sentidos no jornalismo. É um cenário que concede um novo lugar às mídias (Piccinin e Soster, 2012) e apresenta novos modelos de negócio para as empresas jornalísticas.


 



  1. A midiatização do telejornalismo


 


Para Piccinin e Soster (2012), a contemporaneidade concedeu um novo lugar às mídias. Sendo assim, o telejornal, por exemplo, se apresenta em um novo contexto de noticiário televisivo, integrado, agora, às mídias a que ele se refere, como o site, as redes sociais digitais e os aplicativos. Portanto, novos protocolos de identidade e de reconhecimento são necessários. Nesse sentido é possível pensar em um jornalismo midiatizado, ou, em um telejornal midiatizado, que deixa de ser apenas meio e passa a ter uma relação dialética e dialógica com outras mídias, caso, por exemplo, do “Jornal das Dez (J10)”, principal telejornal do canal de jornalismo GloboNews na TV por assinatura. De acordo com Soster (2013), o (tele)jornalismo midiatizado apresenta cinco características, tais como: autorreferencialidade, correferencialidade, descentralização, dialogia e atorização. Portanto, é possível pensar em um telejornal midiatizado quando esses cinco movimentos propostos podem ser observados.


 



  1. Em busca das estratégias narrativas no “J10” durante a cobertura da Covid-19


 


De acordo com Motta (2013), nas narrativas jornalísticas pelo menos três narradores/vozes se sobrepõem: o veículo, o jornalista e o personagem. Esses atores sociais disputam espaço pelo poder de voz nas estórias que serão publicadas ou exibidas. Portanto, em cada tema abordado nos telejornais, por exemplo, existe uma negociação simbólica e política entre os narradores. Esses acertos incidirão diretamente no produto jornalístico final. Entre vários motivos apontados por Motta (2013), estudar as estratégias desses enunciadores para obter visibilidade, um posicionamento favorável no relato a ser produzido e/ou sua perspectiva marcada na estória é importante para que se possa entender a “negociação entre os atores sociais em conflito”, “o papel do jornalista-narrador como mediador”, “as determinações de sua cultura profissional” e as “estratégias comerciais e interesses do narrador-jornal (ou telejornal)”.


Para Neto (1995), é a partir dessas estratégias narrativas imperceptíveis aos olhos do público, que os produtos jornalísticos, como os telejornais e programas jornalísticos, não apenas narram, agem sobre os espaços sociais. Miranda (2019) desenvolve e identifica a partir dos conceitos apresentados de estratégias narrativas, da proposta de midiatização no telejornalismo (Piccinin e Soster, 2012) e do telejornalismo expandido (Mello; Coutinho, 2016) dez estratégias narrativas presentes no programa jornalístico “GloboNews Em Pauta” em análise realizada em edições de 2018. As definições das estratégias narrativas identificadas foram sintetizadas por Miranda (2019) e reproduzidas no quadro a seguir.


 


Esquematização das estratégias narrativas identificadas no GloboNews Em Pauta






ESTRATÉGIAS (DE)




DESCRIÇÃO






Autorreferenciais




Quando as narrativas do programa telejornalístico/telejornal falam de si mesmo.






Correferenciais




Quando as narrativas do programa telejornalístico/telejornal se valem de seus pares para referenciar as narrativas produzidas por si mesmo. Por exemplo, através do site e/ou das redes sociais digitais.






Descentralizadoras




Quando as narrativas apresentadas no programa telejornalística/telejornal rompem com a hierarquia de uma instituição midiática/mídia sobre a outra.






Dialógicas




Quando as narrativas do programa telejornalístico/telejornal se valem de outros sistemas (literário, cinematográfico) na sua construção. Por exemplo, a linguagem literária nos programas televisivos, a estética documental em reportagens.






Atorização




Quando as reações e comportamentos dos atores sociais do programa telejornalístico passam a compor a narrativa audiovisual apresentada.






Exclusividade




 Quando algumas narrativas do programa telejornalístico são frequentemente apresentadas como exclusivas, em primeira mão.






Autopromocionalidade




Quando o programa telejornalístico usa suas narrativas para se autopromover ou promover algum produto audiovisual do mesmo canal, profissionais ou tecnologias/estruturas da emissora.






Certificação/Autenticação




Quando o programa telejornalístico insere elementos em suas narrativas na tentativa de conferir mais autenticidade ou de certificar/chancelar o relato/história.






Didatização/Pedagogização




Quando as narrativas do programa telejornalístico são utilizadas frequentemente com o intuito de “ensinar”, ou para demarcar uma posição entre quem explica (geralmente os comentaristas) e quem “aprende”.






“Ao Vivo”




Quando o programa telejornalístico opta para que suas narrativas sejam produzidas “ao vivo”.






Fonte: Miranda, 2019


 


A partir do exposto, o presente trabalho busca identificar e analisar as estratégias narrativas propostas por Miranda (2019) e presentes em um telejornal midiatizado, nos termos de Piccinin e Soster, 2012, a saber o “Jornal das Dez (J10)”, do canal de jornalismo GloboNews, ao longo de seis edições da cobertura da Covid-19. O “J10” foi escolhido como objeto do presente trabalho por tratar-se do principal produto jornalístico do canal GloboNewa. A análise das edições será realizada a partir da proposta metodológica da Análise Televisual (AT) (Becker, 2012). Para este trabalho o corpus de análise selecionado será de seis edições do “J10”, com foco específico nas notas, comentários, reportagens e entrevistas que tenham relação com a Covid-19, a saber as edições analisadas serão as dos dias: 27 de fevereiro de 2020 (edição do dia seguinte a confirmação do primeiro caso de Covid-19 no Brasil); 26 de março (edição 30 dias após a confirmação do primeiro caso brasileiro); 27 de abril; 26 de maio; 26 de junho; 27 de julho.


 


Referências

 


ANKERKRONE, Elmo Francfort. Telejornais que fizeram história. 2001. Disponível em: <http://www.sampaonline.com.br/colunas/elmo/coluna2001set28.htm>. Acesso em: 02 abr. 2020.


 


BECKER, Beatriz. Mídia e jornalismo como formas de conhecimento: uma metodologia para leitura crítica das narrativas jornalísticas audiovisuais. MATRIZes, São Paulo, ano 5, n. 2, p. 231-250, janeiro/junho 2012. Disponível em: <https://www.revistas.usp.br/matrizes/article/viewFile/38335/41197>. Acesso em: 11 fev. 2019.


 


BOCZKOWSKI, Pablo J. Digitilizing the news: innovation in online newspaper. Massacusetts: The MIT Press, 2004.


 


EXAME. The New York Times ganhou 348 mil assinantes desde a posse de Trump. Disponível em: <https://exame.abril.com.br/negocios/new-york-times-ganhou-348-mil-assinantes-desde-posse-de-trump/>. Acesso em: 15 nov. 2018.


 


FOLHA. Após vitória de Trump jornais dos EUA registram alta de assinaturas. Disponível em: <https://www1.folha.uol.com.br/mercado/2016/11/1833553-apos-vitoria-de-trump-jornais-dos-eua-registram-alta-de-assinaturas.shtml>. Acesso em: 15 nov. 2018.


 


JENKINS, Henry. Cultura da Convergência. São Paulo: Editora Aleph, 2008


 


MELLO, Edna; COUTINHO, Iluska. Telejornalismo expandido: o conteúdo jornalístico televisivo nas redes sociais. In: 14º ENCONTRO NACIONAL DE PESQUISADORES EM JORNALISMO, 2017, Palhoça. Anais do 14º Encontro Nacional de Pesquisadores em Jornalismo. Palhoça: [s. n.], 2016.


 


MIRANDA, Pedro Augusto Silva Miranda. Intimidade mediada: as estratégias narrativas do GloboNews Em Pauta na comunicação com o público. Orientadora: Cláudia de Albuquerque Thomé. 2019. Dissertação (Curso de Mestrado em Comunicação) – Universidade Federal de Juiz de Fora, Juiz de Fora, 2019. Disponível em: <https://repositorio.ufjf.br/jspui/handle/ufjf/9334>. Acesso em: 30 ago. 2020.


 


MOTTA, Luiz Gonzaga. Análise Crítica da Narrativa. Brasília: Editora UnB, 2013.


PAVLIK, John Veron. Journalism and new media. Nova York: Columbia University Press, 2001.


 


PICCININ, Fabiana; SOSTER, Demétrio de Azeredo. Da anatomia do telejornal midiatizado: metamorfoses e narrativas múltiplas. Brazilian Journalism Research, São Paulo, v. 8, n. 2, p.118-134, 05 jul. 2016. Disponível em: <https://bjr.sbpjor.org.br/bjr/article/view/427>. Acesso em: 11 fev. 2019.


 


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SECRETARIA ESPECIAL DE COMUNICAÇÃO SOCIAL. Pesquisa brasileira de mídia 2016 : hábitos de consumo de mídia pela população brasileira. Brasília: Secom, 2016. 120 p. Disponível em: < http://www.pesquisademidia.gov.br/files/E-Book_PBM_2016.pdf> Acesso em: 22 ago. 2020.


 


SOSTER, Demétrio de Azeredo. Dialogia e atorização: características do jornalismo midiatizado. In: 11º ENCONTRO NACIONAL DE PESQUISADORES EM JORNALISMO, 2013, Brasília. Anais do 11º Encontro Nacional de Pesquisadores em Jornalismo. Brasília: [s. n.], 2013.

Publicado
2020-10-27
Como Citar
MIRANDA, Pedro Augusto Silva. Um Telejornal midiatizado em tempos de Covid-19:. Anais de Resumos Expandidos do Seminário Internacional de Pesquisas em Midiatização e Processos Sociais, [S.l.], v. 1, n. 4, out. 2020. ISSN 2675-4169. Disponível em: <https://midiaticom.org/anais/index.php/seminario-midiatizacao-resumos/article/view/1237>. Acesso em: 29 mar. 2024.