(Des)dobrar o universo em midiatizações: (des)calibração do ver para ouvir estrelas

  • Fabiola Ballarati Chechetto Pontifícia Universidade Católica de São Paulo - PEPGCOS/PUC-SP

Resumo

Per aspera ad astra. Trinta anos e 10 bilhões de dólares na concepção e construção. Nesse ínterim, incidentes, desprendimentos, queda intermitente de dados nas conexões, condições meteorológicas desfavoráveis, falhas no equipamento, adiamentos e atrasos. Em 25 de dezembro de 2021 o Telescópio Espacial James Webb (JWST), projeto desenvolvido em conjunto pela NASA, a Agência Espacial Europeia (ESA) e a Agência Espacial Canadense (CSA) foi lançado ao espaço pelo foguete Ariane 5 a partir do Centro Espacial de Kourou, na Guiana Francesa.


A travessia entre caminhos árduos e ir além do trivial, reverbera per aspera ad astra, desde Sêneca no IV séc. a.C., Virgílio com Eneida, na poesia de Petrarca, e em nosso tempo midiático pela cultura pop no seriado televisivo Star Trek desde 1966. Com James Webb, o feito encarna o dito, não como destino, mas como aventura informacional em atualização. 


A experiência de acompanhamento de todas as fases de idealização, construção, lançamento, calibração e captura de imagens científicas de um telescópio lançado ao espaço, antes restrita aos astrônomos, físicos, matemáticos, engenheiros, informáticos, geofísicos e técnicos espaciais, vem sendo acessada pela web, tv, rádio, jornais e desperta interesse na gente comum, amadores, curiosos, simpatizantes e pensadores de outras perspectivas. Adesões, incertezas e contrastes, os vários pesos específicos, sem requisitos e sem assinatura, assimétricos e a qualquer instante, em tempo real, entram no jogo público, não só veiculativo, mas principalmente dialogante.  


De que maneira os cientistas traçam metodologias e que tipo de conhecimento produzem das combinações imagéticas geradas pelos artifícios da técnica? Que relações estabelecem com as imagens técnicas processadas pelos públicos na oportunidade de criar com elas imaginações do céu? Quando Flusser (2019, p.47) elogia a superficialidade dizendo que “os químicos e os físicos, ao falarem sobre imagens técnicas, estão engajados em discurso inteiramente inapropriado ao do receptor das imagens, embora recorram aos mesmos termos”, insinua que uma ciência programadora e codificadora, ignora as artimanhas da linguagem e a plurivocalidade da cultura que, com o televisor ou a sala de cinema proporcionam valores, produzem experiências e conhecimentos. Que dizer da intertextualidade dos meios sociais digitais na virtualização das redes?  


Este trabalho propõe estudar os modos de ver e mostrar o espaço, do espaço e da Terra, com as maquinações interagentes entre culturas científicas e artísticas. Como categoria de análise, detém-se nas calibrações do ver que, como consequência, podem gerar uma comunicação de dobramento da natureza pelas leis científicas, ou, oferecer chances de descalibração daquele ver. Olhando os desdobramentos da natureza, imaginadas como fagulhas heurísticas para uma epistemologia da comunicação, desdobrar a mente calibrada evoca com urgência a tarefa plural das midiatizações como “potência de ação crítica” (Ferrara, 2020, p. 275). Nesse sentido, as midiatizações em suas indeterminadas deliberações ressoam algo daquela potência de agir da virtù em Maquiavel (2010) e pergunta-se: o tato e a prudência (SÓFOCLES, 1990) poderiam se tornar qualidades estratégicas na reedição de um conhecimento que ousa ouvir aquele comunicar que não se vê?    


 


Calibrações dos modos de ver


 


A história dos modos de ver “o céu e os céus” (Koyré, 2006, p. 9) deixa rastros dos modos de pensar da cultura ocidental com pontos de inflexão que assinalam passagens entre transformações sociais, econômicas, políticas, religiosas e filosóficas nos seus modos de comunicar. Os meios pelos quais esses modos são entrelaçados, permeiam e alteram as calibrações desses modos, que podem remodelar os meios, potenciando seu alcance, mas sobretudo oportunizando mudanças nos modos de ver. 


O céu, comum a todos, recebe acepções distintas em cada época, sendo visto ora como abstração, ora como objeto observável. “Na tradição medieval cristã, o Céu que importava era o celestial em um predomínio do simbólico sobre o concreto que caracterizou a maior parte da Arte medieval” (OLIVEIRA, 2000, p. 7). A Revolução Científica do Renascimento substitui a “visão-de-mundo” medieval por uma “cosmovisão mecanicista moderna” (OLIVEIRA, 2000, p.7). 


De uma visão finita e harmoniosa das estrelas fixas, passou-se, como define Koyré (2006) “do mundo fechado ao universo infinito''. Do geocentrismo de Ptolomeu com suas escalas simétricas e constantes sustentado em Aristóteles e adotado pela Igreja Católica ao longo de séculos no Medievo, ao heliocentrismo de Copérnico, mas sobretudo das Leis de Kepler que inauguram a mecânica celeste, derivadas do aprendizado com Tycho Brahe, e às arrojadas ideias de Giordano Bruno sobre a infinitude do universo e outros mundos, que por sua vez “traduzem” antigas concepções dos pensadores gregos atomistas. “[...] Copérnico, Kepler e Galileu nos legaram uma nova Imagem do espaço ao descentrar o Cosmos” (OLIVEIRA, 2000, p.8, grifo nosso).


            Para experimentar a realidade daquele céu que desafiava a aparência, foi preciso criar instrumentos que permitissem longo alcance para visualização efetiva de seus movimentos. Galileu desafia o aristotelismo teorizado e desenvolve uma luneta astronômica para olhar pela primeira vez o que realmente acontecia no céu, no alvorecer do século XVII. Desde o século IX, astrônomos árabes já desenvolviam a camera oscura, que Kittler (2016, p.163) entendeu como “uma primeira técnica de recepção, e a lanterna mágica, uma primeira técnica de transmissão”. Ao analisar uma arqueologia das “mídias ópticas", o estudioso alemão diz que a única coisa que não existia antes da fotografia era “uma técnica de arquivamento que permitisse, primeiro, transmitir no tempo e no espaço, as imagens captadas e, depois, retransmiti-las em outro ponto do tempo e do espaço” (KITTLER, 2016, p. 163).


O século XX vai além das teorias newtonianas com a possibilidade de experimentos realizados por meios técnicos e informacionais aperfeiçoados, e traz novas propostas de investigação científica, com uma notável consequência: 


 


a Natureza deixa de ser monótona. O que os avanços do presente século vão engendrar é uma multiplicação, uma tripartição, digamos, dos modos de apresentação da natureza, ou seja, a Natureza vai apresentar distintos modos de ser de acordo com a escala do fenômeno investigado, aparições diferenciadas se focamos a escala microscópica, a escala clássica (que estamos mamiferamente equipados a experimentar) ou a escala cosmológica, astronômica. Dependendo da escala que se considera, diferentes naturezas, ou seja, diferentes conjuntos de fenômenos, com suas relações típicas, seus caracteres próprios, serão manifestadas. Logo, o mundo natural deixa de ser unânime, não é mais o mesmo em todas as escalas (OLIVEIRA, 2000, p. 16).


 


No contemporâneo, o modo de ver o céu conta com avanços tecnológicos sem precedentes, mas remonta uma pergunta antiga: Como tudo começou? Como/configuração, onde/espaço e quando/tempo tudo começou? Finito ou infinito? Nos últimos quarenta anos, as teorias do “Big Bang” ofereceram uma hipótese de explosão de onde tudo teria começado. O telescópio James Webb tem, como um de seus objetivos, observar a galáxia em uma distância que permita enxergar indícios dessa explosão.


O cosmólogo brasileiro Novello (2010, p. 90) contrasta o modelo do “Big Bang” como descrição científica de tudo o que existe, inferindo que “aceitando a existência de um momento de criação em um tempo finito, ele impede o conhecimento racional do Universo” e propõe um cenário chamado “Universo eterno dinâmico, no qual teria ocorrido uma fase de colapso gravitacional anterior à atual expansão” (NOVELLO, 2010, p. 90).


As variações entre as escalas identificadas pela experimentação das técnicas com a vida e a hipótese contemporânea de uma dinamicidade contínua, fazem do céu, da observação e dos próprios observadores, sujeitos criadores de imagens que podem olhar e interagir entre si e com os objetos, a partir do que veem, ouvem e sentem, em co-criações com os meios, sejam eles tecnológicos, ambientais, corporais, cósmicos ou algorítmicos. Não sofremos apenas os efeitos, mas sobretudo, somos partícipes do que há ainda por fazer. Como enuncia Ferrara (2020, p. 286) “o homem também não é fixo e único, não se torna antiguidade se não adere ao efeito dos meios; ao contrário, aquela interiorização exige a experiência da vida com os meios sem ser determinada por eles”.


 


Dobrar, desdobrar, reeditar


 


Nesta pesquisa analisamos dois extratos empíricos envolvendo recepções/apresentações dos modos de ver, nas midiatizações com o telescópio James Webb: 1. Apresentação científica: calibração e alinhamento dos espelhos do telescópio pela NASA com a captura da primeira imagem de uma estrela como objeto técnico e 2. Apresentações artísticas: produções dos públicos compartilhadas pelo projeto #UnfoldTheUniverse (NASA, 2022), em tradução livre: “desdobre o universo”.


“Dobrar” o universo pela ciência da precisão tecnológica para alcançar resultados que expliquem a realidade, se apoia em uma epistemologia dependente da assertividade transmissiva, exigindo a eliminação do “ruído” para afinar ainda mais a clareza do que se vê, com o espetáculo performático que fascina ou desilude. 


“Desdobrar” o universo apresenta diferentes imaginários possíveis nas expressões da arte e do invento.  O projeto da Nasa recebeu variadas produções de pinturas  do mundo todo: crianças, adolescentes, adultos e idosos de diversos países produziram poesia, podcast, estátuas com impressora 3D, bijuterias remetendo ao ouro dos 18 segmentos de espelho do James Webb, trabalhos manuais de crochê e bordados, haicais, capas de cadernos, colagens, instalações com materiais recicláveis, quadros, ilustrações em guache, aquarela, lápis, vários estilos, vídeos de relatos sobre o que imaginam que o telescópio Webb  descobrirá. Muitos autores fotografaram a si junto com suas artes, aparecendo em seus ambientes, decorados, jardins, quartos, salas, com trajes de suas culturas, véus, bonés, distintivos da NASA, capacete e macacão de astronauta, máscaras coloridas contra a pandemia. 


Ao analisarmos os dobramentos da natureza dos céus pela ciência, junto com os desdobramentos dos imaginários nas artes das pessoas, corre-se o risco de departamentalizá-los em hierarquia, sob a égide de um forte poder oficial colocado pela NASA, tanto como missão importante para a humanidade, quanto como convite lúdico que ocupa uma discreta página reservada à “interação” com “o público”, que pode permanecer na “mediação”, se meramente anexado ao midiático. Pelo contrário, se lembrarmos com Ferrara (2020, p. 287) que “não somos midiatizados, mas estamos em midiatização”, as experiências científicas e artísticas não podem mais ser vistas como compartimentos herméticos, mas abertos e reeditáveis, pois fronteiriços e com interferências recíprocas assimétricas, possibilitando trânsitos críticos, submissões, e até mesmo, escolhas antagônicas coabitadas. Um comunicar infinitamente dinâmico.

Publicado
2022-11-05
Como Citar
CHECHETTO, Fabiola Ballarati. (Des)dobrar o universo em midiatizações: (des)calibração do ver para ouvir estrelas. Anais de Resumos Expandidos do Seminário Internacional de Pesquisas em Midiatização e Processos Sociais, [S.l.], v. 1, n. 5, nov. 2022. ISSN 2675-4169. Disponível em: <https://midiaticom.org/anais/index.php/seminario-midiatizacao-resumos/article/view/1411>. Acesso em: 25 abr. 2024.