Além dos números: os sentidos da morte na pandemia

  • Graziele Iaronka da Silva Unisinos

Resumo

Introdução


            A morte sempre estará presente no nosso cotidiano. Entretanto, com a chegada da pandemia da Covid-19, a morte, que antes parecia apenas um momento que chegaria na velhice, como um indicativo do final da vida depois de muitos anos vividos, se tornou um medo diário, uma pauta rotineira e intensa nos meios de comunicação. O vírus, além de estar em todos os locais, está também nas notícias diárias, nas redes sociais, enfatizando um grande número de mortos.


            Ao abrir os portais de notícias, vemos reportagens repletas de imagens que apresentam a intensidade da morte por meio do número de caixões, da fragilidade da vida diante do vírus. Dessa forma, com a circulação das informações e imagens, diferentes sentidos são despertados em que lê.


            Neste resumo expandindo, apresentarei um recorte da minha pesquisa do mestrado, que está na etapa de qualificação. O problema de pesquisa busca investigar de que maneira a circulação midiática sobre as mortes por Covid-19 transforma os sentidos da morte, e quais lógicas de midiatização são mobilizadas na representação da morte. Portanto, no próximo tópico trarei minhas primeiras inferências a partir de uma reportagem feita pela Folha de São Paulo em junho de 2020.


 A morte e a vida lado a lado


            Ao abrir os portais de notícias e buscar por reportagens sobre Covid-19 o que não faltam são notícias com imagens e textos que enfatizam a preocupação com o número de mortos pelo vírus. Para apresentar um pouco sobre a discussão da morte, a reportagem que será trazida aqui é referente ao período inicial da pandemia, em que temos a ameaça do vírus e a morte a espreita.


            Publicada no dia 23 de junho de 2020 pela Folha de São Paulo, essa tem como foco o número total de mortos no Brasil nesse dia (23 de junho), frisando e alertando: esse é o segundo maior número diário registrado até a data da publicação. Na linha de apoio há uma ênfase para o aumento no número de pessoas infectadas e para a soma total de infectados e mortos pela Covid-19 no Brasil. Ou seja, no início já temos um grande alerta da problemática, que atinge todos os campos – saúde, político e social.


            Com um total de 13 imagens, em formato de coleção, a sequência de imagens em preto em branco remete a uma espécie de ensaio, como se desdobrasse uma história: o início e fim do ritual do enterro. Se olhado rapidamente, podemos ver um trailer de um filme de terror. A primeira foto é de uma equipe de coveiros chegando ao cemitério e as últimas fotos mostram as lápides e as covas em que os corpos são depositados.


            Junto dessas imagens há legendas que vão descrevendo os acontecimentos das fotografias. Uma curiosidade identificada em algumas legendas é a forma como são nomeados os coveiros. Nesta reportagem são chamados de sepultadores. Podemos fazer algumas conexões com o episódio ocorrido em 20 de abril de 2020, onde o presidente Jair Bolsonaro coloca que não é coveiro, ao perguntarem a ele sobre o número de mortos pela Covid-19. Ou seja, há um certo empoderamento e respeito, por parte da Folha, com os profissionais responsáveis pelos enterros.


 


 


 


 


            Além de alertar sobre o problema sanitário e das inúmeras perdas, a Folha de São Paulo foca em mostrar o número de mortos e os impasses para driblar as incoerências das informações fornecidas pelo governo. Desde o início da reportagem é colocado que os números divulgados são referentes ao consórcio feito entre os veículos de comunicação (Folha, O Estado de S. Paulo, Extra, O Globo, G1, UOL). Ao decorrer do texto é informado quais os Estados possuem os maiores números, e enfatiza que em algumas regiões não são possíveis de ter o número total, pois o balanço geral diário ainda não foi realizado.


            Na sequência é feito um comparativo do número de mortos do Brasil com os Estados Unidos e Argentina. Por fim é trazido que o consórcio de veículos foi feito devido ao posicionamento do governo Bolsonaro que ameaçou não liberar os dados, que atrasou também a liberação dessas informações, fazendo com que não tivesse a divulgação do número total de mortos. Um contradiscurso ao que o presidente Bolsonaro faz, o que não deixa de ser uma operação midiática.


            É possível notar que essa reportagem busca enfatizar os inúmeros mortos pela Covid-19, e que não apresenta apenas questões da morte e, sim, a dificuldade de se ter o verdadeiro número de mortos. Além disso, não fala sobre os cuidados para não se infectar e tem como foco os números e a questão governamental. O que destoa das imagens, pois essas passam uma visão de narrativa da morte, como se fosse um filme/trailer da morte por Covid-19.


            Ao analisar os 13 comentários dessa notícia podemos notar que as principais questões levantadas pelos leitores são sobre a incerteza da confiança das informações sobre os números de mortos, as medidas sanitárias que estão sendo tomadas para a diminuição dos casos e críticas ao governo. A partir dos comentários nota-se que a morte fica em segundo plano, apenas como um gancho para discutir questões políticas e de saúde pública. O alerta para o número de mortos mostra que algo está errado e de que o governo precisa tomar medidas para a conter o número de mortos. Há a presença dos elementos da morte, mas esses não são usados para acionar discussões sobre os sentidos da morte de fato, mas sobre o que precisa ser feito para frear essa. Nota-se assim, portanto, que símbolos da morte são utilizados para despertar reflexões sobre os sentidos da vida.


 O olhar teórico diante do recorte


            Diante desse recorte, podemos ver que a midiatização aparece em todos os momentos, afinal, a notícia vai além da informação, pois conecta diferentes campos em uma única reportagem. Na medida que vamos lendo a notícia e olhando as imagens, notamos que a Folha de São Paulo nos ajuda a construir um panorama do cenário que estamos vivendo. Podemos pensar então, conforme coloca Gomes (2017, p.40), que  “a midiatização é a chave hermenêutica para a compreensão e interpretação da realidade”, ou seja, a partir dos estudos sobre midiatização, é possível identificar os impactos da pandemia e compreender o impacto da comunicação nessa realidade.


            As mudanças sociais e o universo comunicacional andam lado a lado, pois ao falarmos de um acontecimento que afeta a vida de todos, os meios de comunicação estão presentes. Portanto, “a sociedade percebe e se percebe a partir do fenômeno da mídia, agora alargado para além dos dispositivos tecnológicos tradicionais. Por isso, é possível falar da mídia como um locus de compreensão da sociedade” (GOMES, 2017, p.40).


            Atrelado a todas as problemáticas que são acionadas por meio da midiatização, temos a questão da morte. Ariès (1977), explica que falar sobre a morte, colocar essa como uma das pautas centrais é o que orienta a vida, e que “Nos tratados de espiritualidade dos séculos XVI e XVII, portanto, não se cuida mais, ou pelo menos isso não é primordial, de preparar moribundos para a morte, mas de ensinar aos vivos a meditar sobre ela” (ARIÈS, 1977, p.330). Sendo assim, percebemos que quando falamos da morte, desde os séculos passados, sempre estamos buscando trazer reflexões para os vivos. Esse pensamento é semelhante com os estudos de Elias (2001), que apresenta que a problemática da morte é algo dos vivos, que os mortos não possuem esse problema, pois “Entre as muitas criaturas que morrem na Terra, a morte constitui um problema só para os seres humanos. (ELIAS, 2001, p.100).


            Portanto, podemos analisar nesse recorte, que falar das inúmeras mortes vai além da lamentação, mas sim para enfatizar os motivos e as problemáticas que estão conectadas a morte. Aqui, mas uma vez, notamos que quando falamos dos sentidos da morte, acabamos falando também dos sentidos da vida. Além disso, podemos ver que o sentido gerado pela reportagem não é de luto, mas sim de conscientização do que precisa ser feito, acionando assim o campo político.


 Considerações finais


             A partir dessas inferências, podemos notar que a temática da morte é abordada com o intuito de provocar reflexões e mudanças dos mais diversificados campos sociais. Nota-se que o sentido sobre a morte que emerge nessa reportagem não está conectado ao luto, a perda, mas sim sobre as provocações do que causaram tantas mortes. Vemos que o sentido da morte fica em segundo plano, dando mais ênfase para a vida. Além disso, as imagens apresentam símbolos ícones da morte, mas a reportagem não fala sobre a morte de fato.


            Um destaque nessa reportagem é utilização da palavra coveiro. A nomenclatura foi bastante usada, porém, nota-se que depois da fala do Presidente Jair Bolsonaro “Não sou coveiro, tá?”, se referindo ao número de mortos pela Covid-19, algumas reportagens começaram a contar com a palavra sepultadores. Sendo assim, seria essa nomenclatura uma forma de valorizar a profissão de coveiro, que na fala do presidente fica desvalorizada? Portanto, a forma como o cenário do  político se posiciona, seria também uma forma como as informações são estruturadas e publicadas?


            Além disso, é notável que a midiatização está fortemente presente nesse processo, pois a pandemia trouxe grandes mudanças, fazendo com que todos os campos sociais se reinventassem, afinal, o distanciamento nos levou a mudar não apenas nossos hábitos, mas principalmente nossa forma de se comunicar. A busca por informações e o compartilhamento dessas aumentou, pois diante da distância, as pessoas sentiram a necessidade de se aproximar por meio do mundo digital.


            Portanto, diante dessas inferências, que estão conectadas aos sentidos, é importante pensar na força e intencionalidade das imagens que são usadas quando os portais de notícias informam notícias sobre as mortes por Covid-19. As imagens atraem os atores sociais para a leitura, e esses encontram textos que apresentam informações além da morte. Dessa forma, um dos desafios da minha pesquisa é compreender de que forma os sentidos da morte são utilizados para colocar em debate outras problemáticas sociais.


 Referências


ARIÈS, Philippe. O Homem diante da morte. Rio de Janeiro: F. Alves, 1982.


BRASIL TEM 1.364 MORTES POR COVID-19 EM 24 H, SEGUNDO MAIOR NÚMERO DIÁRIO JÁ REGISTRADO. Folha de São Paulo. São Paulo, 23 de junho de 2020. Coronavírus - Textos liberados. Disponível em: <https://www1.folha.uol.com.br/equilibrioesaude/2020/06/brasil-tem-1364-mortes-por-covid-19-em-24-h-segundo-maior-valor-diario-ja-registrado.shtml>. Acesso em: 10/03/2022.


ELIAS, Norbert. A solidão dos moribundos, seguido de, Envelhecer e morrer. Rio de Janeiro: Zahar, 2001.


GOMES, Pedro Gilberto. A midiatização no processo social. In: GOMES, Pedro Gilberto. Dos meios à midiatização: um conceito em evolução. São Leopoldo: UNISINOS, 2017.

Publicado
2022-11-06
Como Citar
DA SILVA, Graziele Iaronka. Além dos números: os sentidos da morte na pandemia. Anais de Resumos Expandidos do Seminário Internacional de Pesquisas em Midiatização e Processos Sociais, [S.l.], v. 1, n. 5, nov. 2022. ISSN 2675-4169. Disponível em: <https://midiaticom.org/anais/index.php/seminario-midiatizacao-resumos/article/view/1420>. Acesso em: 23 abr. 2024.