Midiatização, desinformação e ceticismo: a comunicação para o bem e para o mal da democracia

  • Jeaniel Carlos Magno Universidade Tuiuti do Paraná - UTP
  • Gabriel Snak UFPR

Resumo

1 Introdução


Após um longo período marcado pela tecnocracia e pelo autoritarismo militar (1964-1984) no Brasil, a sensação de que com a abertura política retomada as exigências mais profundas do inconsciente coletivo brasileiro seriam enfim atendidas. Porém, com o levante interrompido das “diretas já”, desvelou-se não só uma frustração nos anseios democráticos daquela geração, como mostrou que para além de uma democracia formal constituída, seria imperativo uma vigilância preventiva e permanente acerca dos fatores que podem afetar a subsistência da democracia no Brasil. Este trecho é um recorte da nota introdutória da obra A democracia desperdiçada: poder e imaginário social, de autoria do sociólogo e ensaísta Cândido Mendes (1992). Nela o autor vai ao âmago da tecnocracia militar, realça a transição à Nova República, marcada pela confiança renovada, e expõe a  frustração popular experimentada no regime Collor que viria a seguir.


Tendo como fio condutor o que foi tratado nas linhas acima, o objetivo é provocar reflexões sobre o papel da comunicação como front democrático em defesa da democracia e como força opositora, para silenciá-la. Assim, a motivação na pesquisa é problematizar tal dualidade, lançando luz sobre fatores que podem fortalecer a democracia brasileira ou desqualificá-la incidindo na compreensão que a população faz sobre sua real serventia.


Por isso, em tempos de midiatização, desinformação e ceticismo, é fundamental evidenciar estes temas e as propriedades que compõem a comunicação para o bem e para o mal da democracia; revigorar conceitos consensuais que norteiam a democracia; evocar os maiores reveses que a democracia brasileira sofreu e o modo como a sociedade, num todo, reagiu aos acontecimentos; e somar os fatores que provocaram tais reveses, às crises atuais, como parâmetro para realizar um monitoramento preventivo, capaz de identificar nos espaços onde as opiniões se formam o status de relevância ou não da democracia, tendo por delimitação, monitorar grupos de whatsapp temáticos, exemplificados à frente.


 2 Comunicação e midiatização


O eixo que orienta o estudo parte da definição clássica de que: comunicação é o ato de expressar e compartilhar sentimentos, ideias, posicionamentos como resultado de um processo social estrutural, com propósitos que vão além da mera troca de saberes entre indivíduos de uma mesma sociedade, mira a convergência de diferentes perspectivas reveladoras, de modo cooperado e organizado, na espera de cimentar os alicerces da sociedade (MENEZES, 1973b). Com isso, mediada pela troca de informações expressivas a comunicação estimula o conhecimento humano, em última análise, transforma o conhecimento em prática transmissível e em saber utilizável (MENEZES, 1973a). Assim, notamos que na qualidade de campo do conhecimento sobre os estudos da comunicação, técnicas, modos de transmissão, canais por onde a informação transita, é no domínio das ramificações do campo que o processo comunicacional incorpora um viés estratégico para atrair a atenção do público em busca de gerar o engajamento deste em torno de uma causa.


No que tange à relação comunicação e midiatização, o estudo visa destacar que os processos de consumo de mídia hoje passam por mutações já caracterizadas como de hipermidiatização. Cumpre aqui resgatar as contribuições do que se compreende por midiatização profunda trazida por Hepp (2020) e Bolin (2020), pois, para além da ocorrência de sujeitos sociais que se tornam agentes de formação de opinião, como é o caso de inúmeros youtubers com milhares de seguidores nas mídias sociais, por exemplo, que partem de uma dimensão de um modo de ser ou de um estilo de vida midiatizado, como entendia Hepp (2014), agora a dimensão da própria análise de algoritmos e da infraestrutra digital deve se incorporar aos seus objetos de análise, defende Hepp (2020).


Hjarvard (2014) fala em midiatização intensificada como de viés institucionalista, à medida que pretende ressaltar a adaptação e/ou acomodação de atores e instituições às lógicas dos meios, à "gramática normativa” das novas mídias, como as mídias sociais. Para Miège (2018), meios como a Spotify, Deezer e YouTube interferem no fluxo de consumo de conteúdo produzido por produtores que não detém o controle desse processo. Tudo, numa concepção “norte”, europeia ou atlanticista dos processos de midiatização, pois no outro polo, sul global, Carlon (2020), Anselmino (2020), Silveira (2020) e França (2020), trazem uma perspectiva de que a investigação não deve ficar restrita à “gramática" intrassistêmica das redes (e plataformas), mas seguir para uma abordagem intersistêmica, ou seja, que construa pontes e relações com os usuais meios de comunicação de massa.


O panorama acima traz uma inquietação: os reflexos da midiatização nas eleições de 2018 com as implicações, por exemplo, das fake news naquele contexto. Pontuamos este pleito como uma crise aguda na vida democrática brasileira, porque a estrutura alternativa de mídia desbancou a importância de um Horário Político Eleitoral Gratuito (HGPE): um candidato sem representação partidária no Congresso Nacional que respaldasse uma maior exposição ao HGPE ganhou as eleições demonstrando maior destreza no uso das mídias sociais para usar a sua própria militância como produtora e impulsionadora de conteúdo, sobretudo via whatsapp.


3 Comunicação e os sinais de crise da democracia


Em que pese os diversos ângulos pelos quais o termo democracia foi observado e assim, conceituado, como ponto de partida, adotamos, para fins didádicos, uma definição diminuta do que venha a ser democracia. Para isso, só há um caminho para se chegar a um consenso quando se pretende conceituar democracia: percebê-la como “contraposta a todas as formas de governo autocrático: é o de considerá-la caracterizada por um conjunto de regras (primárias ou fundamentais) que estabeleçam quem está autorizado a tomar as decisões coletivas e com quais procedimentos” (BOBBIO, 2019, p. 35, grifos do autor).


Nesse aspecto, cabe ainda apontar para uma regra básica no âmbito da democracia, refere-se às diretrizes que definem as decisões coletivas, e uma vez aprovadas pela maioria daqueles a quem pertence o poder de decretar a decisão, são impostas a todo o grupo. E dentro de uma definição diminuta de democracia, é preciso realçar a extrema necessidade de que aqueles que são convocados a decidir ou a escolher os que deverão decidir tenham à mão opções concretas para deliberar entre uma e outra, como forma de assegurar o direito de liberdade de opinião e outros direitos tidos como invioláveis em favor do cidadão, fixados na constituição. (BOBBIO, 2019).


Para o sociologo alemão Claus Offe (1984), um dos sintomas de crise democrática se apresenta a partir de crises econômicas, financeiras e de legitimação, como exemplos, e se intensifica na medida em que o Estado frustra as expectativas da população e o voto de confiança do eleitor naquele que o representa e decide por ele o futuro do país se mostra desperdiçado. Por sua vez, para o cientista social Adam Przeworski (2020), num cenário em que a democracia se encontra em risco, pouco a pouco suas instituições e os alicerces que sustentam sua vitalidade são colocados em dúvida. Estes sintomas são perceptíveis, a partir da inexistência de eleições disputadas; da retirada de direitos tal e qual o da liberdade de expressão e de associação; e da comprovação de que o Estado Democrático de Direito já não desperta um interesse popular, demonstrando com isso, o quanto as bases da democracia já estão comprometidas (PRZEWORSKI, 2020).


Quer dizer: em “nenhum país do mundo o método democrático pode perdurar sem tornar-se um costume. Mas pode tornar-se um costume sem o reconhecimento da irmandade que une todos os homens num destino comum? ” (BOBBIO, 2019, p. 68).


Para Alexis Tocqueville (2005), é preciso monitorar dois aspectos associados à democracia que podem afetar sua subsistência, relacionado à democracia tirânica. De um lado, a tirania da maioria, impedindo que a minoria participe, se manifeste, se oponha. De outro, a tirania do individualismo exacerbado, fazendo com que o indivíduo terceirize a administração de suas decisões de caráter coletivo ao Estado, priorizando seus próprios afazeres em detrimento às questões de interesse público. Em linhas gerais, todos os sinais aqui apresentados testam a democracia, mas “há um projeto, que nós subestimamos, que passa pela manipulação das mentes e das emoções”, ressalta Castells (2019, p. 8), e que contesta preceitos básicos da democracia, como os direitos humanos, cita Castells (2019).


Daí a importância em monitorar esses e outros fenômenos que representam riscos à democracia, haja vista que “uma ditadura não se instaura por outros meios que não os democráticos” (SCHMITT, 1928 apud OFFE, 1984, p. 83). Basta trazer à tona episódios como: o chamado golpe militar de 1964, com o desfecho do AI-5, e o golpe parlamentar aplicado contra a democracia em 31/08/2016, para avaliar em que medida fatores ligados à comunicação impactaram cada episódio, porque a comunicação tanto pode contribuir em termos de incentivo e propagação em prol da democracia, como “ela pode se tornar uma força antidemocrática muito importante” (GOMES, 2018, p. 337).


Por isso, a partir dos aspectos anteriormente levantados sobre midiatização, é que o episódio relacionado às eleições de 2018, intensificado pelas fake news, ganha destaque em nossa pesquisa. A meta é ampliar reflexão e fomentar uma agenda investigativa sobre a inquietação levantada, conforme sugere Albuquerque (2016). Haja vista que uma nova eleição se avizinha e reclama por um monitoramento com o eixo epistemológico fixado na comunicação, e tratar as fake news como um risco à democracia é crucial, como alerta Gomes e Dourado (2019), mas também requer maior atenção a outros sinais que surgirem.      


4 Traçado metodológico


Apresentado o arranjo teórico basilar para o estudo e o caminho a ser percorrido na investigação, o esquema metodológico planejado parte de um monitoramento em que o foco são grupos de whatsapp de natureza temática: grupos de passatempo (caça, pesca); de música (bandas, cantores); de organizações e movimentos; religião e crenças; e outros.


A natureza da pesquisa é exploratória, a abordagem é qualitativa, e cada postagem no whatsapp, surgindo indícios que possam colocar em risco à democracia e às leis que a subsidiam, torna-se uma “unidade discursiva”. Para tal, nos servimos dos aportes teóricos de Braga (2008), relacionado ao paradígma indiciário, no qual, vestígios, sinais e rastros percebidos ao lançar luz sobre o objeto estudado, validam a produção de inferências. No que tange à análise dos dados coletados, o uso da Análise Crítica do Discurso (ADC), de Van Dijk, foi a opção no afã de produzir generalizações teóricas ou aprofundar reflexões.    


 5 Considerações


Isto posto, ao eleger este estudo, a proposição é apontar para um fenômeno que precisa ser melhor depurado nas eleições majoritárias de 2022, a partir de um caminho epistemológico que seja capaz de codificar o conteúdo das mensagens veiculadas via whatsapp com o intuito de identificar quem são, de fato, os seus emissores: pessoas físicas atomizadas ou grupos, coletivos, pessoas jurídicas ou empresas de mídia com linha editorial definida ou, ainda, robôs ou bots posicionados para replicar conteúdo sem uma curadoria realizada pela imprensa tradicional: seguindo-se à possível identificação, recomenda-se a aplicação de entrevistas em profundidade para preencher uma carência de estudos que evidenciem a real identidade desses emissores num processo massificado de midiatização já em caráter avançado, de hipermidiatização ou mediação profunda, para resgatar Hepp (2020), atendendo, assim, à constituição de uma nova e adicional agenda de pesquisa, preconizada por Albuquerque (2018).


Com isso, a pretensão é levantar pistas sobre o ethos democrático predominante no inconsciente coletivo brasileiro, que orientem os estudos sobre os perigos que rondam a democracia brasileira, recomendado por Mendes (1992). Pois a ausência de uma agenda investigativa própria, capaz de interpretar preventivamente sinais exclusivos das crises da democracia brasileira; e o desleixo em organizar ações que fomentem laços sociais que revigorem a democracia, colocam em risco sua subsistência, se nada fizermos.


Nessa direção, ancorados no método hipotético dedutivo de Popper, suspeitamos que bolhas sociais e cognitivas apresentam um viés de confirmação acerca do que é disseminado nas mídias sociais e a depender das ideias ali defendidas a democracia corre perigo. Por último, como a pesquisa está em andamento, lançamos mão de incorporar à investigação, grupos no telegram, como aposta investigativa.

Publicado
2022-11-07
Como Citar
MAGNO, Jeaniel Carlos; SNAK, Gabriel. Midiatização, desinformação e ceticismo: a comunicação para o bem e para o mal da democracia. Anais de Resumos Expandidos do Seminário Internacional de Pesquisas em Midiatização e Processos Sociais, [S.l.], v. 1, n. 5, nov. 2022. ISSN 2675-4169. Disponível em: <https://midiaticom.org/anais/index.php/seminario-midiatizacao-resumos/article/view/1441>. Acesso em: 25 abr. 2024.