Discurso e construção social da realidade numa ambiência de mediatização profunda da sociedade e da cultura

  • Cassio Santos Santana UFBA

Resumo

Buscamos, neste artigo, empreender esforços para aproximar noções a respeito da produção de discursos e construção social da realidade, em um contexto de novas formas de interações entre produtores e co-produtores de mensagens, muito por conta das possibilidades abertas pelos processos de mediatização da sociedade e da cultura. Partimos da seguinte questão: como pensar a relação  entre discurso e sociedade em um cenário de aprofundamento do processo de mediatização que implica numa complexificação da paisagem midiática?


Para tanto, optamos por trabalhar com as contribuições de dois autores que, embora situados em domínios específicos no âmbito dos estudos do discurso, dialogam e intercambiam preocupações mútuas em relação à problemática, Eliseo Verón e  Norman Fairclough. O liame que supomos aproximar os dois autores é a ênfase, continuamente reiterada, na relação entre o textual e o extratextual,  ligando certos aspectos dos discursos às condições de produção e reconhecimento dos mesmos. A ideia é que, se o que constrói o social são práticas ligadas a discursos, então o discurso carrega, de alguma maneira, traços do social e, além disso, é um vetor de proposição de movimentos discursivos e extra discursivos no tecido societário.


Partimos do pressuposto de que a realidade é uma construção social mediada pelos processos linguageiros (Berger e Luckmann, 1985). A realidade da vida cotidiana, de acordo com Berger e Luckmann, é considerada como uma realidade certa, que se impõe, mas é um mundo que se constrói, particularmente, no pensamento e nas ações dos indivíduos. O que chamamos de real é engendrado, portanto, pelo menos em uma das suas dimensões, nas mentes humanas, por discursos e representações.


Couldry e Hepp (2017) defendem que o processo de midiatização tem papel fundamental na construção da realidade social. Para eles, a midiatização se desenvolve em fases e vivemos, particularmente as sociedades ocidentais, o que eles chamam de estágio da digitalização ou deep mediatization. Nesta etapa, segundo estes autores, há um entrelaçamento entre mundo social e tecnologias de mídia, de modo que os efeitos deste processo vão desembocar, profundamente, na dinâmica da sociedade e da cultura. A midiatização, portanto, atuaria como uma espécie de ponte entre sujeitos e aparatos técnicos, que juntos operariam na construção da realidade social.


Surge, então, a possibilidade de aproximar as contribuições de Eliseo Verón e  Norman Fairclough à perspectiva da mediatização, enquanto esteio para se avançar na compreensão da construção da realidade social contemporânea a partir da produção discursiva. Embora a midiatização não se resuma a processos linguageiros, é possível identificar marcas deste processo nas materialidades linguístico-discursivas, como atesta Figueiredo (2020):


 


A midiatização não se resume ao plano da linguagem, tendo associação direta com o mundo material. Assim como o discurso e suas ordens, o processo da midiatização também não é palpável e observável em sua integralidade, mas a investigação pode ser iniciada nas marcas deixadas nas materialidades lingüístico-discursivas, as quais (re)constroem fios de um complexo arranjo da estruturação social (FIGUEIREDO, 2020, p.8)


 


Como Eliseo Verón (2004) pontuou, todo discurso é, por natureza, social, nasce e evolui a partir de uma semiose que é social, histórica e infinita, da complexa rede de construção de sentido engendrada nas relações humanas. Torna-se impossível pensar em um discurso à margem de uma cultura, de um contexto social, político e econômico. Para Verón, tudo “o que é produzido, o que circula e o que produz efeitos dentro de uma sociedade são sempre discursos (evidentemente, tipos de discurso, cujas classes devem ser identificadas e cuja economia de funcionamento deve ser descrita)” (VERÓN, 2004, p. 61).


 


O semiólogo franco-argentino analisou diferentes produtos e linguagens mediáticas, em particular os jornalísticos. Verón entendia os produtos jornalísticos como um campo privilegiado para a análise das transformações sociais (Verón, 2004). A produção desses discursos, conforme proposto na noção de semiose social, possui uma lógica de funcionamento interdiscursiva: “toda análise de discurso implica um certo dispositivo que é, se podemos dizer assim, um fragmento de tecido semiótico ‘arrancado’ do fluxo da produção social de sentido” (Verón, 2004, p. 73).


Eliseo Verón (1980; 1993) busca a natureza social do sentido ao reclamar uma visão ampla do sistema de produção dos discursos sociais, em que três etapas sejam levadas em consideração em matéria de análise: produção, circulação e reconhecimento. Verón (2005) alerta para a não linearidade do sentido, ao postular que um conjunto textual sempre tem duas leituras possíveis: a do processo de produção e do reconhecimento do discurso (VERÓN, 2005; BRAGA, 2005).


Fairclough, por sua vez, defende, ancorado nos estudos pragmáticos no âmbito da linguística, que todo o discurso é um modo de ação - afirmação que tem implicações importantes e de grande vulto para os estudos sobre discurso e sociedade. Primeiro porque, infere-se, se o discurso é uma ação, os indivíduos não simplesmente constroem representações através dele, mas agem sobre o mundo através dele. O discurso seria um vetor ativo na construção social da realidade.


Para Fairclough, “o discurso é socialmente constitutivo e contribui para a constituição de todas as dimensões da estrutura social que, direta ou indiretamente, o moldam e o restringem” (FAIRCLOUGH, 2001, p.32). Há uma relação dialética entre discurso e sociedade. Enquanto a sociedade molda e impõe restrições ao discurso, o próprio discurso constitui e constrói, discursivamente, o social, de modo que é impensável pensar em um sem relacioná-lo com o outro.


 


É importante que a relação entre discursos e estrutura social seja considerada com dialética para evitar os erros de ênfase indevida; de um lado, na determinação social do discurso e, de outro, na construção do social do discurso. No primeiro caso, o discurso é mero reflexo de uma realidade social mais profunda; no último, o discurso é representado idealizadamente como fonte do social (p.92)


 


Mais tarde, Fairclough (2003) irá considerar o discurso como apenas um momento das práticas sociais. O discurso seria um vetor capaz de recontextualizar a prática social, de modo que não é possível considerar a prática em si mesma (o ato de realizar algo) com o discurso (a representação do ato). A Teoria Social do Discurso (TSD) “considera que as práticas sociais se estabelecem dentro da dinâmica do mundo material e suas atividades, sendo uma conjunção entre ação e interação, discurso e semiose, relações sociais, sujeitos e fenômeno mental” ( Leeuwen 2008 apud Figueiredo 2020).


A prática social, qualquer que seja ela, está relacionada a uma prática discursiva. Assim, pensar na relação social-discurso é ter em conta o modo pelo qual a sociedade constitui-se enquanto objeto de significado por meio da linguagem. A ideia de uma dialética entre discurso e estrutura social encontra eco nos estudos sobre midiatização. Se a mediatização refere-se à inter-relação entre mudanças nos meios de comunicação, de um lado, e as mudanças na cultura e na sociedade, de outro (HEPP, 2014), é possível se pensar de que maneira acontece essa relação dinâmica e qual parte cabe ao discurso neste processo.


 


Referências


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Publicado
2022-11-05
Como Citar
SANTANA, Cassio Santos. Discurso e construção social da realidade numa ambiência de mediatização profunda da sociedade e da cultura. Anais de Resumos Expandidos do Seminário Internacional de Pesquisas em Midiatização e Processos Sociais, [S.l.], v. 1, n. 5, nov. 2022. ISSN 2675-4169. Disponível em: <https://midiaticom.org/anais/index.php/seminario-midiatizacao-resumos/article/view/1478>. Acesso em: 28 mar. 2024.