Midiatização e a circulação em torno do incêndio no Museu Nacional no Twitter

  • Fernanda Cristina Cardoso Guedes PPGCOM/UFF/Doutoranda

Resumo

 

Braga (2012b, p. 34) — há exatos dez anos da produção deste artigo —, alertava quanto ao fato de que os processos sociais estariam cada vez mais midiatizados à medida que a questão comunicacional se tornava mais central e presente na sociedade. Um movimento que, há poucas décadas, apresentava-se como novidade, em função de um avanço tecnológico que redirecionava a comunicação de massa do acesso aos meios de produção e disseminação da informação antes restritos à indústria cultural. Alguns anos depois, Gomes (2016, p. 18) retoma o debate e acrescenta que somos “uma sociedade em processo de midiatização”:


A midiatização abrange dois movimentos simultâneos e dialéticos. De um lado, ela é fruto e consequência das relações, inter-relações, conexões e interconexões da utilização pela sociedade dos meios e instrumentos comunicacionais, potencializados pela tecnologia digital. De outro, ela significa um novo ambiente social que incide profundamente nessas mesmas relações, inter-relações, conexões e interconexões que constroem a sociedade contemporânea. A sociedade é em midiatização. O ser humano é em midiatização. Isso, hoje, sublinhe-se, configura um novo modo de ser no mundo (GOMES, 2016, p. 18).


 


A partir dessas proposições, é possível dizer que, atualmente, com os chamados avanços tecnológicos consolidados (estabelecidos, diga-se de passagem, por seu status quo na sociedade, mas compreendendo sua constante mutação e complexificação ao longo do tempo), são os processos em si e interações que se tornam protagonistas nas reflexões a partir e nesses meios. Considerar essa ponderação como afirmativa traz a campo questões ligadas à interação, representação, expressão, identidades entre outros temas.


Dado que essa reconfiguração dos meios traz em si dinâmicas próprias de produção e disseminação de conteúdo em que indivíduos antes postos como audiência, se colocam também como produtores, pensar a mediatização perpassa por admitir que “o desenvolvimento das mídias aportou modificações significativas nos modos pelos quais a sociedade interage com a sociedade” (BRAGA, 2016, p. 129). Em que pesem ainda características de interação que possam remeter a lógicas anteriores (BRAGA, 2006, p. 17), mas que admitem lógicas próprias e que estão em constante desenvolvimento aos nossos olhos. Desse modo, conforme aponta Braga (2016, p. 129), é profícuo direcionarmo-nos rumo a estudos sobre “os processos interacionais midiatizados que alimentam uma forte variedade de alternativas de pesquisa e de produção de conhecimentos”.


A partir dessas reflexões e em diálogo com autores como Recuero (2009; 2016), Schau e Gilly (2003) e Polivanov (2014) entre outros, este artigo pretende jogar luz sobre a midiatização de uma tragédia patrimonial, tomando como objeto de análise as repercussões ocorridas no Twitter em torno do incêndio que, na noite do 2 de setembro de 2018, culminou na perda de cerca de 80% do acervo da instituição museológica mais antiga do país e, até então, um dos maiores museus de história natural do mundo, o Museu Nacional/UFRJ.


Ao mesmo tempo em que ardiam as chamas no Palácio de São Cristóvão, na Quinta da Boa Vista, no Rio de Janeiro, centenas de milhares de usuários de plataformas digitais utilizaram esses espaços para manifestar-se sobre o fato notório que as diversas mídias tradicionais transmitiam naquele momento. Em uma teia de relatos, opiniões, imagens e hashtags, formou-se naquele espaço um verdadeiro “museu de afetos” (AUTOR, 2019), revelando uma intensa e imediata produção de conteúdo que alimentou uma interação nesses espaços por muito tempo ainda após o ocorrido.


Desastres patrimoniais desvelam como grupos sociais se vinculam a esses locais através de relações de memória, afeto, que podem revelar pertencimentos e narrativas a partir de um espaço físico. Pereira (2018) aponta a necessidade de se pensar os estudos sobre o tema a partir das “múltiplas dimensões e perspectivas possíveis de um desastre, que residem nas experiências singulares e nas relações de poder e terrenos de significados” (PEREIRA, 2018, p. 257). A autora chama atenção para o fato de que desastres se relacionam com outras condições, dentro de um processo, como resultado de conjunções humanas, históricas e ideológicas que resultam em uma “vulnerabilidade” produzida, então, por essas múltiplas escalas que o colocam como parte de uma acepção maior do evento em si. De acordo com Pereira,


Um desastre é produzido historicamente e se perpetua enquanto processo, para além do evento crítico deflagrador, no desenrolar das ações práticas e relações que se estabelecem no tempo e no espaço, sobretudo entre os sujeitos que sofrem seus efeitos de forma mais pungente e as instituições que tratam racional e burocraticamente das ações de mitigação, reparação, reconstrução etc. (PEREIRA, 2018, p. 259).


 


Como parte de uma pesquisa mais ampla (uma etnografia digital impetrada durante meu doutorado), que investiga as conversações em torno e a partir do incêndio no Museu Nacional/UFRJ nas mídias sociais, para este artigo farei um recorte sobre um conjunto de publicações realizadas no Twitter ainda na noite de 2 de setembro de 2018. Para tal, irei verificar o uso das hashtags #museunacional e #incendionomuseunacional a partir do próprio buscador da plataforma e utilizando meu perfil pessoal. Assim, como direciona Recuero (2009, p. 22), procurarei evidenciar nesses espaços o sujeito e suas conexões, considerando as mídias sociais como zonas de disputa e onde são exercidas práticas identitárias, em que é possível observar as formas e modos de representação de um corpus social. Ou seja, da interface entre a ação humana e os meios técnicos (HINE, 2016), explorar o espaço das mídias sociais nas experiências de sociabilidade e identidade que se manifestam nesses locais.


Conforme aponta Braga (2012a, p. 35), a observação dos processos interacionais diante das múltiplas interfaces tecnológicas, torna-se bem mais amplo e complexo do que restringir-se ao “objeto ‘meios’ ou ao objeto ‘receptores e suas mediações’, mas os incluem, a ambos, em formações muitíssimo diversificadas e ainda articulados a outras formações”. A ver o que pondera Sodré (2016, p. 109) sobre midiatização, ao considerá-la um certo tipo de gramática, que nos conecta a “uma nova instância de orientação da realidade capaz de permear as relações sociais por meio da mídia e constituindo [...] uma forma virtual ou simulativa de vida, a que damos o nome de bios midiático”. Essa característica traz em si uma riqueza de possibilidades e de caminhos metodológicos para seus estudos, ao mesmo tempo que desvela também os desafios para as pesquisas que se apliquem sobre essa temática.


Enquanto esfera pública, as mídias sociais são palco para que os indivíduos construam e compartilhem opinião pública (Recuero, 2016). Em uma sociedade dita midiatizada, vimos a transposição e inclusão de novos papeis no modus comunicacional, em que o protagonismo dos processos produtivos também pode ser atribuído ao que antes poderia se considerar o “polo receptivo”. Impactando, desse modo, conforme aponta Weschenfelder (2020, p. 9) “na formação de vínculos, elaborações discursivas e fluxos interacionais que venham a se constituir nas relações empreendidas num determinado contexto comunicacional”. Nos move, então, um olhar sobre esses fenômenos que considerem “a tecnologia como mediadora de relações sociais e de processos identitários, e onde ‘usos coletivos’ se conjugam com ‘usos individualizados'” (BARROS, 2012 p. 3). Essa percepção traz à tona a constatação de como são afetados os modos de circulação nesses espaços, ou seja, percebendo os receptores como agentes ativos e capazes, a partir de suas conexões, contextos e redes sociais produzir enunciados e novos sentidos, onde a circulação, segundo Braga (2012a, p. 38), passa a ser vista como o espaço do reconhecimento e dos desvios produzidos pela apropriação”.


Segundo Fausto Neto (2018, p. 84), “cada vez mais os acontecimentos e outros discursos de várias naturezas se mesclam e circulam nas plataformas da midiatização”, produzindo diferentes enunciados e, por conseguinte, uma diversidade de produção de sentidos. Nesse sentido, para o autor, “a circulação é concebida como “região” na qual os sentidos não apenas transitam, mas também são tecidos”. Isso significa dizer que os sentidos ao transitarem através da circulação, não o fazem


sem interferências ou imunes às diferenças e lógicas dos seus nichos produtivos, bem como da sua dinâmica da circulação. A circulação não é uma zona de recepção e de trânsito dos sentidos, mas lócus de engendramentos de macro e micro processos comunicacionais, na medida em que tem também, como referência, as transformações dos fenômenos sociotécnicos (FAUSTO NETO, 2018, p. 30).


 


Retomando, então, as questões relativas aos modos de expressão e sociabilidades que ocorrem em mídias sociais, tendo o panorama dos estudos de midiatização como norteadores de uma abordagem sobre como ocorreram as manifestações e conversações no Twitter na noite de 2 de setembro de 2018 sobre o incêndio no Museu Nacional/UFRJ, emerge a estrutura deste artigo[2]. Somam-se às discussões sobre circulação, circuitos e produção de sentidos, sem que se perca de vista o contexto em que ocorrem as publicações observadas. Desse modo, irão emergir os apontamentos existentes sobre a plataforma Twitter, bem como sobre o acontecimento em si, em que pese abordar o tema do desastre e o cenário em que se encaixa o Museu Nacional/UFRJ no contexto dos museus no Brasil (AUTOR, 2018). Serão compartilhadas as estratégias metodológicas, pontuando os desafios para a realização do trabalho, bem como o corpus apurado, com as conversações sobre o incêndio. Por fim, será realizada uma discussão sobre os dados apresentados, bem como a reflexão sobre os caminhos da pesquisa mais ampla em que o artigo se insere. Cabe salientar que, ao longo do trabalho irei realizar um contínuo exercício de afastamento, devido a minha proximidade com o Museu Nacional/UFRJ, onde atuo há mais de 18 anos[3] e fui responsável pelo gerenciamento de crise em Comunicação nos dois anos que se seguiram ao incêndio. Uma missão que segundo Velho (2013, p. 84), exige um exercício constante por parte do pesquisador em manter o “estranhamento” em relação ao que está sendo estudado como também a ele mesmo.


Por fim, cabe ressaltar, como aponta Braga (2012a, p. 44), que a prática social depreende circuitos hoje não mais marcados de acordo com fronteiras entre os campos sociais, pelo contrário, há inúmeros atravessamentos que se apresentam e que se colocam como desafio ao olhar do pesquisador. Espero, então, através da metodologia utilizada, que seja possível apresentar esses circuitos, sem a pretensão de demarcá-los, uma vez que se compreende sua incessante e constante intersecção, mas que possamos observá-los exatamente a partir dessa perspectiva de que são permanentes de cruzamentos e processos autônomos, que não podem ser restritos à perspectiva de um único trabalho de pesquisa.


 


 Referências bibliográficas


 


BARROS, C.  Representations of poverty and digital inclusion: Clashes over alterity in the field of technology and the virtual universe. Journal of Latin American Communication Research, v. 2, p. 92-114, 2012.


 


BRAGA, José Luiz. Mediatização como processo interacional de referência. Animus, v. 5, n. 2, p. 9-35, 2006.


 


_____. Interação como contexto da Comunicação. Matrizes, v. 6, n. 1, p. 25-41, 2012a.


 


_____. Circuitos versus campos sociais. In: MATTOS, Maria Ângela; JANOTTI JUNIOR, Jeder; JACKS, Nilda. Mediação & midiatização. EDUFBA, 2012.Mediação & Midiatização. Salvador: EDUFBA, p. 31-52, 2012b.


 


_____. Perspectivas para um conhecimento comunicacional. In: LOPES, Maria Immacolata Vassallo. Epistemologia da comunicação no Brasil: trajetórias autorreflexivas. 2016.


 


FAUSTO NETO, Antônio. Midiatização da enfermidade de Lula: sentidos em circulação em torno de um corpo-significante In: MATTOS, Maria Ângela; JANOTTI JUNIOR, Jeder; JACKS, Nilda. Mediação & midiatização. EDUFBA, 2012.Mediação & Midiatização. Salvador: EDUFBA, p. 31-52, 2012.


 


_____. Circulação: trajetos conceituais. Rizoma, v. 6, n. 2, p. 08-40, 2018.


 


AUTORA, 2018.


 


AUTORA, 2020.


 


Gomes, P. G. Midiatização: um conceito, múltiplas vozes. Revista FAMECOS, 23(2), ID22253, 2016. https://doi.org/10.15448/1980-3729.2016.2.22253


 


HINE, Christine. Estratégias para etnografia da internet em estudos de mídia. In: CAMPANELLA, Bruno; BARROS, Carla (org.). Etnografia e consumo midiáticos: novas tendências e desafios metodológicos. E- papers, 2016, p. 11-28.


 


MATTOS, Maria Ângela; JANOTTI JUNIOR, Jeder; JACKS, Nilda. Mediação & midiatização. EDUFBA, 2012.


 


PEREIRA, A. B. N.. Memória do lugar e experiências de resistência no contexto de deslocamento forçado provocado pelo desastre de Mariana/MG. In: 18th IUAES, 2018, Florianópolis. 18th IUAES - International Union of Anthropological and ethnological Sciences. Florianópolis/SC: Tribo da Ilha, 2018. v. 1. p. 247-259.


 


POLIVANOV, B. B.. Dinâmicas identitárias em sites de redes sociais: estudo com participantes de cenas de música eletrônica no Facebook. 1. ed. Rio de Janeiro: Multifoco, 2014. v. 1. 238p.


 


RECUERO, Raquel. Diga-me com quem falas e dir-te-ei quem és: a conversação mediada pelo computador e as redes sociais na internet. Revista Famecos, v. 16, n. 38, p. 118-128, 2009.


 


______. O twitter como esfera pública: como foram descritos os candidatos durante os debates presidenciais do 2º turno de 2014? 1. Revista Brasileira de Linguística Aplicada, v. 16, p. 157-180, 2016.


 


SCHAU, Hope; GILLY, Mary. We Are What We Post? Self-Presentation in Personal Web Space. Journal of Consumer Research, v. 30, 2003.


 


SODRÉ, Muniz. Entre a instituição e a organização. In:  Ferreira, J., da Rosa, A. P., Neto, A. F., Braga, J. L., Gomes, P. G., Peraya, D., Fausto Neto, A, org. Entre o que se diz e o que se pensa: onde está a midiatização? Onde está a midiatização? (Vol. 1). FACOS-UFSM, 2018.


 


VELHO, Gilberto. Um Antropólogo na Cidade: Ensaios de Antropologia Urbana. Rio de Janeiro: Zahar, 2013.


 


WESCHENFELDER, Aline. Estudo de caso midiatizado: estratégia metodológica em pesquisas no contexto da midiatização. Anais de Artigos do Seminário Internacional de Pesquisas em Midiatização e Processos Sociais, v. 1, n. 4, 2020


 


 


 


 


[1] Trabalho apresentado ao V Seminário Internacional de Pesquisas em Midiatização e Processos Sociais. PPGCC-Unisinos. São Leopoldo, RS.


[2] O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - Brasil (CAPES) - Código de Financiamento 001.


[3] Adentrei na instituição em 2003, como estagiária de assessoria de imprensa, assumindo a coordenação do setor e, de 2012 a 2020, coordenei o Núcleo de Comunicação e Eventos do Museu Nacional/UFRJ.

Publicado
2022-11-05
Como Citar
GUEDES, Fernanda Cristina Cardoso. Midiatização e a circulação em torno do incêndio no Museu Nacional no Twitter. Anais de Resumos Expandidos do Seminário Internacional de Pesquisas em Midiatização e Processos Sociais, [S.l.], v. 1, n. 5, nov. 2022. ISSN 2675-4169. Disponível em: <https://midiaticom.org/anais/index.php/seminario-midiatizacao-resumos/article/view/1535>. Acesso em: 27 abr. 2024.