Em torno da midiatização: o consenso dos diálogos
Resumo
Midiatização é processo, midiatizar é um ato. Ambos se relacionam com o modo como lidamos com a atividade e o processo da Comunicação e a eles damos forma. Se estabelecemos corte e foco a um determinado conjunto de tecnologias (massivas, digitais, sociais, automatizadas), a midiatização será trabalhada a partir de um contexto temporal, quando não a contextos outros que são definidores da intensidade de envolvimento com recursos que estão ao alcance, passando a envolver aspectos não apenas tecnológicos e comunicacionais, mas geopolíticos, econômicos, sócio-culturais, pedagógicos e profissionais.
Para Lelo (2021), cabe
observar, nos meandros das interações paulatinamente impregnadas por dispositivos sociotécnicos, as iniquidades que delas podem emanar, descortinando não só suas incidências negativas na conformação da trama social, mas também engendrando formas de resistência a elas.
Em consonância com esta perspectiva crítica, toma-se aqui uma definição transversalizada de trabalho, que se relaciona com a aventura humana na relação com recursos dos quais se apropria, na medida em que busca caracterizar processos de visibilidade e reconhecimento por parte de seus semelhantes.
Nesse contexto, são compreendidas pesquisas em áreas distintas que evidenciam a importância crítica da análise sobre o presente fenômeno, compreendendo a dimensão tecnológica de uma abrangência que envolve, no momento presente, as ramificações de atuação da Inteligência artificial. Pesquisas em torno do seu impacto ambiental (Brevini, 2024), profissional (Santos, Figueiredo, 2024), geopolítico (Medrado, Verdegem, 2024) e epistemológico (Siles, Gómez-Cruz, Ricaurte, 2024) são abordagens necessárias dentro de um cenário em que as perspectivas da midiatização se reconfiguram e desdobram de modo desafiador.
Midiatizar como ato e midiatização como processo se encontram, portanto, em atividades e eventos distintos, tais como campanhas eleitorais e condução de mandatos políticos, megaeventos globais não necessariamente culturais, mas que envolvem o encurtamento de distâncias potencializadas pelas tecnologias digitais em rede, a ascensão e a derrocada de impérios, entre outros, em torno dos quais se constituem como estratégias de mobilização coletiva executadas em vários níveis (do local ao global) e articulações (políticas, econômicas, culturais, profissionais, etc), conformando a especificidade e a transversalidade desse campo de estudos.
A midiatização se constitui como um elemento articulador dessas relações humanas com o conjunto disponível dos meios, proporcionando especiais instigações num contexto em que a circulação de conteúdos se dá através de plataformas digitais que articulam pessoas em distintos modos organizativos e recursos materiais, dispostos em diferentes níveis de proximidade e pertencimento. Assim, a plataformização se constitui num ato mobilizado por agenciamentos determinantemente econômicos, viabilizados por processos políticos, a partir de um desenvolvimento tecnológico que se orienta pela visibilidade e pelo reconhecimento que os legitimam socialmente.
Não é possível, portanto, descolar as implicações da midiatização aos processos de industrialização da cultura (Adorno e Horkheimer, 1985) e do entretenimento (Moraes (Org.), 2003), da espetacularização como elemento caracterizador da sociedade (Débord, 1997), da importância da mídia como elemento aglutinador da cultura (Kellner, 2001), bem como da potencialidade da inteligência coletiva (Lévy, 1998) e das multidões inteligentes (Rheingold, 2002) em tempos de colonização de dados (Couldry, 2019).
Em meio a uma quantidade excessiva de informação incompatível com a capacidade humana de processamento, a sociedade em geral demanda não apenas dispositivos tecnológicos capazes de automatizar tarefas, que se colocam como análogos à própria realização humana em atividades cotidianas, sob o risco de lidar com nossa insignificância, como também é atribuída reputação a determinados temas que mobilizam interesses, em torno do que compreendemos como economia da atenção e do que passamos a efetivar como tendência, processo este que pode ser compreendido como trendificação (Lacouette, 2023).
A maior contribuição do negacionismo instituído e reverberado nas plataformas digitais em escala massiva é a necessidade de nos voltarmos para os fundamentos de nossos achados, para repactuar caminhos de contribuição do sistema de pensamento científico para a sociedade. Para além de refazer os fundamentos que nos permitem compreender por que a Terra é plana e que gira em torno do Sol, como homo sapiens que somos, descendentes dos macacos, conduzir um debate em torno da liberdade de expressão que a contextualize em torno de outros direitos humanos fundantes da sociedade democrática e que ressalte a importância do papel do Jornalismo, como mediador de acontecimentos para a publicização de fatos, e da Ciência, como resultante do conhecimento comprometido com a comprovação sistemática de evidências torna-se extremamente necessário.
Em tempos de discursos de ódio, de esgotamentos proporcionados pelas crises do capitalismo e da disseminação de estímulos a comportamentos desintermediadores, que desconstroem referências de produção de fatos e conhecimentos em torno e a partir dessas plataformas, compreendidas em sua dimensão perversa e assimétrica. Diante desse contexto, a agenda da pesquisa sobre midiatização precisa estar comprometida com uma repactuação social em torno de valores como a pluralidade, a diversidade e a equidade, em torno da qual consensos possíveis possam ser vislumbrados e empreendidos. Essa transformação implica na incidência em aspectos socioculturais, tecnológicos, econômicos e políticos nos diversos campos profissionais e científicos, demandando uma abordagem multidisciplinar para lidar com suas implicações e uma construção multilateral e multinível, que demande um projeto compatível com sua abrangência global.
Do ponto de vista econômico, o ultraliberalismo alcançou um estágio nunca antes visto e talvez o limite possível em termos de captura regulatória na aliança entre Elon Musk e Donald Trump, que evidencia farsa da independência do Estado, já manifesta em vários episódios do desenvolvimento da Internet O acirramento do poder já estabelecido em torno da Indústria Cultural e de sua afirmação pela espetacularização e pela performance, transversaliza formas de atuação e proporciona a sociedade que atualmente compreendemos como midiatizada.
A sustentabilidade da Internet como sistema estabelecido nessas bases precisa ser visibilizada num arcabouço regulatório consistente, que viabilize novos e distintos espaços de atuação da sociedade, visando proporcionar a necessária continuidade de suas atuações. Isso implica na mobilização para o comprometimento dos Poderes Públicos em diferentes contextos, possibilitando caminhos para a implementação e a continuidade de iniciativas que resultem na desconcentração do controle de plataformas, considerando a adequada ocupação de espaços de apropriação das TICs que impliquem na produção e na circulação de conteúdos de distintas procedências, de forma coabitável.
No entanto, o cenário geopolítico de implementação dessas novas tecnologias se dá num contexto de um novo e respaldado governo Trump, tensionado pela expansão global da extrema-direita, pelo enfraquecimento de diversas lideranças no continente europeu e por um improvável alinhamento entre EUA e Rússia que impõe desafios para a expansão dos BRICs diante de uma política inibidora das diversidades intrinsecamente relacionadas à afirmação dos direitos humanos, que uma agenda em torno das análises sobre a midiatização não deve se furtar de enfrentar.
A captura da Internet pelas corporações leva à afirmação das mídias sociais, bem como sua consequente plataformização. A organização de informações disponibilizada nessas plataformas se dá em torno de um processo compreendido como datificação. O reconhecimento e legitimação dos conteúdos em rede, perversamente traduzidos como engajamento (Bastos, 2020) em cultura participativa (Jenkins, 2006), leva à trendificação (Lacouette, 2023), que precisa ser compreendida ampla e profundamente, em relação aos impactos proporcionados em distintas atividades cotidianas dos diversos setores sociais. Disposta num contexto hiperinformativo em que são disputados sentidos e atenções, são acionados mecanismos de gamificação (Robson et al, 2015; Santaella, L. Nesteriuk, S. e Fava, Fabrício (Orgs.), 2018), em que conteúdos se legitimam pela capacidade de engajar mais do que pelos significados.
Para Couldry e Hepp (2017, p.34), “a atual onda da digitalização e da datificação corresponde a fases de uma midiatização profunda, pois são associadas a uma incorporação muito mais intensa de mídia em processos sociais do que nunca”. Tais processos demandam a necessidade de uma visão sistêmica, que articule análises sobre aspectos particulares na relação com dimensões globais que evidenciem interrelações que conformam os objetos pesquisados.
A regulação e a regulamentação se tornam aspectos necessários, mas precisam se fazer possíveis dentro de um campo de enfrentamento do Estado democrático de direito em torno da resistência de suas instituições. A sociedade organizada reconhece o Estado como melhor forma política de dar conta do interesse público, então cabe referenciar o Estado no enfrentamento à captura regulatória e o discurso em torno de sua inviabilidade em favor do poder do Capital.
Como exposto por Saldanha (2022),
se a midiatização é estratégica, está sim atrelada a um pensamento linear e unilateral de uma comunicação dominante que tem e usa os meios para fins de difusão ideológica via dados em imagem para criar um sentido coletivo despido de análise crítica, uma vez que tem sim uma lógica própria, fechada em si e que cuida da manutenção do próprio poder.
A empreitada do reordenamento dos sistemas de comunicação proporcionado pela apropriação das tecnologias e processos pelo Mercado demanda a conscientização e a repactuação dos papeis sociais e cidadãos, nos quais a participação em prol da constituição de políticas públicas democráticas se faz necessária, tais como a pluralidade, diversidade e equidade; o comprometimento com a diminuição e a desejável supressão da assimetria de renda e a distribuição equânime dos recursos, o reconhecimento e a afirmação das potências de existir, valorização das formas de existência familiares. Em suma, um espaço onde se construa o consenso em torno da capacidade de construir diálogos.