Imagens e formas corporificadas do protesto feminista pelo aborto legal na fotorreportagem
Resumo
Quando observamos as fotografias de ações feministas, notamos que elas auxiliam na visualização de suas pautas porque traz à tona os conflitos encampados pelos corpos das mulheres ao longo de décadas. Refletir e analisar o campo da cultura visual hoje significa entender qual a participação das imagens jornalísticas e midiáticas no rol das lutas sociais. Nesse texto, argumentamos que os materiais visuais que cobriram as recentes manifestações feministas pelo aborto legal e seguro em países da América Latina, não são elaborados apenas para uma catalogação documental ou o registro de um evento, mas para a configuração de uma imagem reconhecível do ativismo feminista que possa ser atualizado pelo olhar público e trazido como elemento constituinte de uma narrativa visual propriamente política.
No Brasil, somente em 2024, dezenas de manifestações feministas foram registradas em diferentes capitais e cidades do interior no intuito de frear os ataques contra direitos adquiridos, entre eles, o aborto legal e seguro que conta com assistência do Sistema Único de Saúde. Mesmo assegurado por lei desde 1940, conforme artigo 128 do Decreto Lei 2.848, em casos de gravidez decorrente de estupro, risco de morte à gestante ou anencefalia fetal, o aborto tem sido alvo constante de projetos de lei e emendas parlamentares que visam restringir ou inviabilizar sua efetivação.
Em um dos acontecimentos recentes no país, a proposta de votação, pela Câmara dos Deputados, do PL 1904/2024, propunha a equiparação do aborto ao crime de homicídio, incluindo pena de até vinte anos de prisão à mulher que precisasse realizar o aborto. Já a PEC 164/2012 busca proibir o aborto legal sob qualquer circunstância, já que inclui, no texto constitucional, que a vida é direito inviolável desde a concepção.
Esse panorama de disputas é pautado por diferentes narrativas, valores morais, religiosos e culturais que tensionam a agenda e as ações feministas no avanço e ampliação por direitos. O aborto legal, por exemplo, passou a ser tratado como um tema jornalístico, midiático, muito mais vinculado aos anseios morais e religiosos manejados por instituições em alianças políticas do que como um problema de saúde pública, concernente aos direitos sexuais e reprodutivos. Ao observar o tratamento dado pela imprensa notamos que costumam recolocar o tema do aborto em pauta conforme o calendário de acirramento eleitoral e de negociações político partidárias, muitas vezes, forjando sentidos e percepções. Nesse contexto de disputas, cabe questionar como as ações feministas são comunicadas ainda hoje. Como protestos e reivindicações feministas têm constituído uma narrativa, propriamente política, através de diferentes práticas comunicacionais e midiáticas na atualidade?
Analisamos preliminarmente como as imagens têm adquirido cada vez mais centralidade atuando como elementos fundamentais em um campo de tensões e disputas políticas e afetivas. Desse modo, fotografias, vídeos, ilustrações, entre outros, passaram a constituir um campo material da experiência capaz de tensionar, recombinar ou mesmo alterar quadros culturais, percepções sociais e padrões normativos já instituídos. Argumentamos que, no jornalismo, especificamente, as imagens não são meros avalistas de um discurso preestabelecido ou apenas registro de eventos cotidianos, mas medium, isto é, mediadores simbólicos do comum (Calderón, 2020; 2023; Gomes, 2017; 2019; Vacarezza, 2017), capazes de modificar, tensionar, construir e/ou deslocar sensibilidades, valores e ideias.
Como aponta Calderón (2020, p.35), conforme os contextos, as imagens não respondem somente como um plano de representação, reprodução ou projeção discursiva, mas como um plano de conexões, de operações que abrem, articulam, relacionam, criando outras configurações entre elementos (sígnicos, sensíveis) antes não vistos. Assim, as imagens são importantes à elaboração de uma dimensão narrativa, política e comunicativa dos movimentos feministas porque põem em circulação outros quadros de pensamento, imaginação e sentido. Para tanto, trazemos um recorte do material empírico da pesquisa em andamento sobre exemplares da fotorreportagem “Mulheres protestam pelo direito ao aborto em vários países”, veiculada pelo jornal Folha de São Paulo, em 02 de outubro de 2021.
Como reitera Verónica Gago (2020), é na situação de assembleia, do encontro coletivo de mulheres, lésbicas, cis, trans e demais grupos menorizados que se torna possível perceber a força de usar o corpo de modo a materializar uma demanda vivida no cotidiano das mulheres. Uma convocatória ou uma passeata são exemplos da encarnação desse exercício comum de compartilhamento da voz e do espaço. Essa potência primordial identificada pela autora seria um primeiro modo organizador da sociabilidade colaborativa que caracterizaria uma ação feminista. Judith Butler (2018, p.45) também considera que aparecer em conjunto nos espaços públicos adquire uma dimensão política central do ativismo de certos grupos. “A performatividade de gênero presume um campo de aparecimento no qual o gênero aparece, e um esquema de condição de reconhecimento dentro do qual o gênero se mostra” (Butler, 2018, p.45). Como uma força plural conjunta, as mulheres em assembleia performam uma demanda corporificada pelo direito a vidas mais vivíveis diretamente coligada aos modos de aparição. Assim, a imagem adquire uma centralidade na reflexão da autora porque seria o médium das demandas corporificadas dos ativismos políticos na atualidade.
Recentemente, mulheres e jovens se reuniram em outubro de 2021, em diferentes países, para reivindicar o aborto legal e seguro como um direito. Na fotorreportagem do jornal Folha de São Paulo, publicada no dia 02 de outubro de 2021, vemos, em uma das fotos, muitas mulheres juntas caminhando pela rua. Algumas olham para baixo, outras aparecem conversando. Muitas delas utilizam máscaras de proteção ou lenços de cor roxa, signo do feminismo. Os pañuelos verdes, que representam um ícone da luta pelo aborto legal e seguro também são usados. A foto opta pela composição aberta usando a zona de aglomeração para registrar um grande grupo de mulheres que parece se prolongar até o fundo da imagem, de modo a perder de vista a quantidade exata de pessoas que ocupam a porção superior do quadro. O desfoque das personagens da caminhada também é um recurso técnico que faz com que o limite da rua seja confundido com a multidão de pessoas. Apenas as mulheres da porção inferior da foto aparecem com mais nitidez, embora o uso de máscaras e lenços dificulte a identificação pessoal da maioria delas.
De fato, não é a identificação o que importa à fotografia, mas a apresentação de um conjunto coeso de mulheres, jovens, idosas, trans que se prolonga, indefinidamente, pela rua segurando cartazes com mensagens e usando adereços e cores que produzem uma reconhecível unidade de grupo. Sem exasperações, sem aparentes confrontos, todas elas caminham juntas em concerto. Se traçarmos uma linha horizontal na foto, vemos ainda que apenas a mulher de cabelos lisos, compridos, com um vestido claro e lenço roxo no rosto parece ser uma mexicana, dado o formato dos olhos, a cor, entre outras características físicas. Abaixo, na legenda, há a informação de que “Também foram realizados protestos no México, país onde a Suprema Corte descriminalizou o aborto no início do mês de setembro”; e só assim é possível saber em qual cidade ocorreu a caminhada registrada nessa imagem.
Esses elementos reunidos não são casuais em uma foto com o propósito de registrar uma ação feminista em uma cidade latino-americana. O anonimato das mulheres, a diversidade étnica, o efeito de multiplicação que adquirem, os adereços que portam, o modo de caminhar juntas: todos esses elementos convergem para um sentido de comunhão de corpos e de compartilhamento de uma demanda encarnada, corporificada, que é comum e cotidiana, uma vez que faz parte do dia a dia. O aparecer coletivo das mulheres não se restringe à mera representação de um protesto porque inscreve, a partir dos corpos em aliança, a materialização de uma demanda socialmente produzida, vocalizada e encarnada (Butler, 2018, p. 37).
Como uma forma de reação ao reiterado silenciamento e invisibilidade, mulheres decidem e aderem pelas formas de reivindicação e resistência pública. Através das outras fotos que compõem a reportagem, vemos a produção de um tipo de enunciado corporificado ou uma ação de fala corporificada que reforça a adesão em massa como recurso para que possam aparecer publicamente e assim afetar, engajar outros corpos promovendo dinâmicas de disputa, ruptura e deslocamento sob o risco constante de desaparecimentos.
Seguindo a reflexão sobre as formas corporificadas de protesto, Gomes (2017; 2019) reitera que a transformação do corpo e das emoções é um recurso político do ativismo que faz parte do repertório de novos sentidos e afetos investido sobre as demandas feministas. Para ela, a produção de novas práticas pedagógicas tem nutrido um processo contínuo de disputa acerca das linguagens e estéticas com que se trata o tema do aborto publicamente. Durante décadas, na luta pelo direito ao aborto legal e seguro na América Latina, as feministas investiram em performatividades corporais e emocionais para produzir significados, imagens, narrativas e afetos alternativos sobre o aborto. Que significados construímos até aqui? Que outros podemos criar? Como modular nossos corpos e emoções nas ruas para produzi-los? (Gomes, 2017, p.3).
A mobilização do trauma, do assassinato e da punição são modelos figurativos constantemente acionados por uma perspectiva conservadora na disputa pelo sentido que se atribui ao aborto. Ao lado de imagens de morte e prisão, a culpa, a dor e a solidão são investimentos subjetivos e afetivos atribuídos às imagens de mulheres que realizam o procedimento. No intuito de produzir deslocamentos e diferenças, todas as fotografias exibidas na fotorreportagem mostram o corpo coletivo em união e resistência contranarrativa. As mulheres não estão sozinhas, isoladas, bem ao contrário.
É importante ressaltar que a fotorreportagem da Folha utiliza o material de agências de notícias como Reuters e Agence France Press, porque adquirem os direitos de imagem de fotojornalistas associadas ao redor do mundo; muitos delas trabalham de modo independente. É o caso das fotos na reportagem, pois foram produzidas e veiculadas por agências que compraram os direitos de fotojornalistas: Toya Sarno Jordan, Nathalia Angarita e Amanda Perobelli. Esse aspecto é um complemento relevante na compreensão das formações culturais e históricas que subjazem a prática jornalística quando da cobertura dessas manifestações feministas da atualidade (Silva, 2017; Silva; Gonçalves, 2018). Não podemos afirmar que a escolha do veículo tenha sido aleatória, pois sabemos das operações editoriais que formam a publicação de matérias, mas, nesse caso, podemos ao menos sinalizar que a participação efetiva de mulheres fotojornalistas, ao redor do mundo, tem acenado para composições visuais diferenciadas quando o assunto é relativo às demandas coletivas de mulheres. Ao se colocarem como um corpo coletivo que pode ser visto nas imagens, enquanto imagem, meninas e mulheres produziriam uma forma de visualidade que desestabilizaria realidades, normas, sensibilidades considerando o direito de aparecer como um enquadramento da união de pessoas que compartilham a mesma sujeição e apagamento constante.