Recomendações dos grupos midiáticos para o uso da IA no jornalismo: uma análise das diretrizes do Grupo Globo e da BBC News

  • Kellyanne Carvalho Alves UFPB
  • Paula de Souza Paes UFPB

Resumo

Empresas de tecnologia como Meta e Google estão se tornando parte integral da infraestrutura de distribuição de notícias, enquanto novos players. As ferramentas e serviços de tecnologias cognitivas de empresas como OpenAI, Microsoft AI, Gemini AI, Deep Seek estão revolucionando as capacidades de criação de conteúdo utilizando inteligência artificial generativa (IAG). O desenvolvimento de Inteligência Artificial (IA) é um processo que começou em meados da década de 50 e já passou por diversos desafios com avanços e retrocessos (Kai-Fu Lee, 2019).  


O aprimoramento da IA, especialmente com a IAG, atinge diretamente o ecossistema midiático digital em rede (Autora, 2022) seja no processo de mediação, “que lida com o uso da mídia para práticas comunicativas específicas em interação situada”, como também na midiatização, que “preocupa-se com os padrões em transformação de interações sociais e relações entre os vários atores sociais, incluindo os indivíduos e as organizações” (Hjarvard, 2014, p.24). 


A midiatização enquanto processo de institucionalização de padrões de interações e relações das organizações, instituições e agentes sociais na vida social pode ser pensado a partir do conceito de sociedade plataformizada (Van Dijck; Poell; De Wall, 2018). “O termo se refere a uma sociedade na qual o tráfego social e econômico é cada vez mais canalizado por um ecossistema de plataforma online global (esmagadoramente corporativo), que é impulsionado por algoritmos e alimentado por dados” (Van Dijck; Poell; Wall, 2018, p.4, tradução nossa). 


As aproximações entre os estudos baseados nos conceitos de midiatização e de plataformização por meio de similaridades e entrecruzamentos foi proposta por Mintz (2018) como possibilidade de ganhos metodológicos no campo. 


Por esta argumentação, talvez poderíamos chegar a compreender a plataformização como um processo mais abrangente do que a midiatização, ao menos se considerarmos esta última por uma concepção tradicional da mídia, com sua origem nos meios de comunicação de massa na primeira metade do século XX. Afinal, a plataformização amplia-se para abarcar toda uma série de setores da vida social, tendo um impacto econômico de larga escala para além dos textos, sentidos e representações, que seriam objetos centrais da mídia em seu sentido tradicional. Contudo, gostaríamos de argumentar que, ao invés de restringir a concepção da mídia a esta perspectiva tradicional, a relação que traçamos entre os processos de midiatização e plataformização parece nos demandar uma ampliação de sua concepção – a qual talvez seja, justamente, uma das consequências mais profundas do processo de midiatização. Esta ampliação conceitual encontra salvaguarda no duplo sentido da midiatização que propõe Hjarvard (2015), compreendida tanto pela influência da mídia sobre a sociedade quanto por sua própria consolidação institucional (Mintz, 2018, 107).


A partir desta proposta, Mintz (2018) busca apontar a necessidade de revisão do conceito de mídia, bem como, considerar a platafomização como elemento relevante a um “processo de midiatização mais amplo”. O autor também aponta que analisar a plataformização sob a concepção da midiatização é um caminho possível ao ser “relacionada a um processo de midiatização da internet, com a emergência de padrões de organização e modelos de negócio generalizáveis que, inclusive, guardam semelhanças com a instituição tradicional da mídia” (Mintz, 2018, p.108).


No cenário contemporâneo da sociedade plataformizada, tanto a mediação como a midiatização estão cada vez mais sendo estruturadas pelas lógicas algorítmicas. No ecossistema midiático digital em rede, tem-se com o desenvolvimento da IAG o surgimento das mídias generativas (Manovich; Arielli, 2023).  As mídias generativas “[...] se referem ao processo de criação de novos objetos de mídia com redes neurais profundas, como imagens, animação, vídeo, texto, música, modelos e cenas 3D e outros tipos de mídias” (Manovich; Arielli, 2023, p.19). Elas começaram a atuar fortemente como ferramentas imperativas que configuram novos padrões de interações e relações dentro das organizações e instituições e entre elas e os agentes sociais na vida social. 


O Jornalismo enquanto instituição social no cumprimento do seu papel de mediador “[…] conquistou historicamente uma legitimidade social para produzir, para um público amplo, disperso e diferenciado, uma reconstrução discursiva do mundo com base em um sentido de fidelidade entre o relato e as ocorrências cotidianas” (Franciscato, 2014, p. 88). No cenário atual da sociedade plataformizada, o jornalismo enfrenta mais um novo desafio no cumprimento do seu papel de mediador social. 


A história do jornalismo é marcada por uma série de inovações em que envolvem os sistemas de tecnologias emergentes em cada época. Atualmente, tem-se as tecnologias de realidade virtual (RV) e a realidade aumentada (RA) usadas na criação de produtos jornalísticos, com os “newgames”. Mais recentemente, as tecnologias cognitivas passaram a integrar as rotinas de produção de notícias, por meio de automação de processo em algumas etapas, como por exemplo; a ideação, análise de grandes quantidades de dados para construção de narrativas jornalísticas, além da aplicação de sistema de personalização e recomendação de conteúdos. Uma iniciativa preconizada em organizações jornalísticas de diversos países do mundo (Beckett, Yaseen, 2023).


 


Por exemplo, chatbots de verificação de fatos são utilizados na produção de notícias para validar ou refutar certas afirmações. Ao mesmo tempo, os dados recolhidos podem ajudar a detectar tendências de desinformação e inspirar um tema para um artigo de destaque, contribuindo assim para o processo de coleta de notícias (Beckett, Yaseen, 2023, p. 14, tradução nossa).


 


O jornalismo também se apropriou do uso de robôs nas mídias sociais, e utiliza a tecnologia para diversos fins, entre eles, o de interagir com as audiências ativas (Autora, 2022) nas mídias sociais. A maioria desses robôs utilizam IA, e fazem parte das inovações de organizações jornalísticas no Brasil e no mundo, como por exemplo os robôs Rui Barbot do site Jota e Fátima da agência Aos Fatos (Cabral, 2022). Como lembra Lemos (2020), a emergência dessas empresas complexifica fenômenos como o da Plataformização, Dataficação e Performatividade Algorítmica (PDPA). 


De fato, as plataformas digitais adquiriram uma posição central e dominante na distribuição de conteúdo noticioso (Jurno; D’Andréa, 2018; Smyrnaios, 2016), capturando a atenção dos usuários e, portanto, a venda de produtos para a audiência, o que ratifica o poder das big techs em relação às empresas jornalísticas (Bell; Owen, 2017; Nielsen; Ganter, 2022) e a dependência que a mídia tem dessas plataformas (García Ramírez, 2021).


Evidências empíricas mostram que as arquiteturas tecnológicas e as escolhas de governança das plataformas não são neutras, afetando o funcionamento tanto das democracias quanto dos mercados (Van Dijck; Poell Waal, 2018), como pode ser observado em escândalos envolvendo as plataformas como foi o caso do Cambridge Analytica. O que gerou alerta para as autoridades sobre a regulação do mercado digital e, mais recentemente, a regulação da IA (Projeto de Lei nº 2.338/2023), que se inspira na Regulação de IA da União Europeia.


            Os usos das ferramentas de IAG no jornalismo trazem inúmeras questões, como por exemplo, a qualidade do conteúdo jornalístico, os ricos do viés algoritmo, a transparência e a ética (Beckett, Yaseen, 2023). A transparência no jornalismo é crucial para a manutenção da confiança e credibilidade jornalística (Christofoletti, Becker, 2024). Conforme os resultados da pesquisa de Beckett e Yaseen (2023), os jornalistas entrevistados aponta para necessidade de as empresas jornalísticas adotar diretrizes institucionais que orientar o processo de aplicação dessas tecnologias nas redações por meio de normas e regulamentos que busquem garantir os usos de forma ética e responsável. Uma medida que visa promover a transparência no processo de produção jornalística como forma de manutenção da precisão, confiança e credibilidade noticiosa.   


 


Objetivo e abordagem metodológica 


Neste contexto marcado por tensionamentos, a nossa contribuição se propõe a fazer uma revisão, não exaustiva, de algumas diretrizes de grupos midiáticos sobre o uso da IA, que foram amplamente midiatizadas. O objetivo é identificar as recomendações desses grupos em relação ao uso da IA nas práticas jornalísticas. Trata-se, portanto, de questionar quais valores próprios da prática jornalística estão colocados em evidência quando se busca normatizar os usos da IA, sobretudo, IA generativa. Para essa contribuição, nossa abordagem analítica é discursiva. Ou seja, ela “[...] confronta-se necessariamente com o modo como o locutor, no seu discurso, constrói uma identidade, se posiciona no espaço social e procura agir sobre o outro” (Amossy, 2010, p. 9). O corpus de análise é composto pelas diretrizes editorais do Grupo Globo (2024)[1] e da BBC News (2024)[2].


 


Primeiros resultados e pistas de reflexão 


O uso de inteligência artificial no jornalismo ganhou uma seção exclusiva nos princípios editoriais do Grupo Globo em 2024, mesmo ano em que a BBC News publica também orientações editorais sobre o uso de IA. Em ambos os grupos, a descrição desse uso coloca em evidência as potencialidades da IA como argumento justificador para fomentar a inovação, a criatividade e aumento da produtividade no jornalismo. De uma maneira geral, as orientações tentam mostrar que os jornalistas estão envolvidos em uma abordagem objetiva e de proximidade com os seus públicos.


O “potencial disruptivo” da IA e das novas tecnologias é valorizado pelas diretrizes, embora em ambos os grupos não fique claro qual software ou ferramenta utilizam, nem mesmo os bancos de dados que acessam. Nesse sentido, chama atenção como a noção de “transparência” é mobilizada nas diretrizes como apenas um compromisso retórico de informar ao público quando um conteúdo faz uso de IA. Ou seja, as diretrizes evocam a importância de mostrar certos aspectos da prática jornalística (“os bastidores”), mas deixam na sombra as limitações que condicionam o trabalho jornalístico e as condições necessárias para a compreensão da feitura de uma informação.


Em outras palavras, a transparência associada ao uso de IA aparece como um ato discursivo mobilizado pelos meios de comunicação para atingir estratégias simbólicas, já que esta noção corrobora com o objetivo desejado pelo jornalismo de produzir uma informação “isenta” e “de qualidade”. Pode-se observar então que as diretrizes parecem seguir na esteira dos discursos das big techs e do solucionismo tecnológico que as acompanha (Autora, 2024), uma vez que, sob a véu da inovação, os grupos midiáticos analisados não problematizam a assimetria de poder existente entre as empresas de tecnologia e meios jornalísticos.


 


Referências

 


Autora, 2022.


 


______, 2023.


 


Autora, 2024.


 


AMOSSY, R. L’Argumentation Dans le Discours. París: Armand Colin, 2006.


 


BECKETT, C.; YASEEN, M. Generating Change: A global survey of what news organisations are doing with AI. The POLIS Journalism at LSE - London School of Economics and Political Science, 2023. Disponível em: https://www.journalismai.info/research/2023-generating-change. Acesso em: 26 maio 2024.


 


BELL, E.; T. OWEN. 2017. The Platform Press. How Silicon Valley Reengineered Journalism. New York: Columbia Journalism School.


 


CABRAL, L. Jornalismo automatizado: Inteligência Artificial e robôs nas redações das organizações jornalísticas. Mestrado (Pós-graduação em Jornalismo). Universidade Federal da Paraíba, 2022. 


 


Christofoletti, R.; Becker, D. 2024). Elementos para uma teoria da confiança e da credibilidade no jornalismo. In Christofoletti, Rogério (org.). Credibilidade Jornalística. Florianópolis, SC: Editora Insular, 2024, p.13-40.


 


FRANCISCATO, C. E. Limites teóricos e metodológicos nos estudos sobre a noticiabilidade. In: SILVA, G.; SILVA, M. P.; FERNANDES, M. L. (Orgs.) Critérios de noticiabilidade: problemas conceituais e aplicações. Florianópolis: Insular, 2014, p. 85-113.


 


GARCÍA RAMÍREZ. Journalism in the Attention Economy: The Relation Between DigitalPlatforms and News Organizations. Brazilian Journalism Research, 17 (1): 4–27, 2021.


 


HJARVARD, S. Midiatização: conceituando a mudança social e cultural. MATRIZes, v. 8, n. 1, p.21-44, jan/jun. 2014. https://doi.org/10.11606/issn.1982-8160.v8i1p21-44.


 


LEMOS, A. Plataformas, Dataficação e Performatividade Algorítmica (PDPA). Desafios atuais da cibercultura. In PRATA, Nair; PESSOA, Sonia C. (Orgs). Fluxos Comunicacionais e Crise da Democracia. São Paulo: Intercom, 2020, p. 117-126.


 


JURNO, A.; C. D’ANDRÉA. Facebook e a Plataformização do Jornalismo: Um Olhar Para os Instant Articles. Revista Eptic,  22 (1): 179–196, 2020. https://seer.ufs.br/index.php/eptic/article/view/12084(open in a new window).


 


LEE, K. -F. Inteligência Artificial: Como os robôs estão mudando o mundo, a forma como amamos, nos relacionamos, trabalhamos e vivemos. Rio de Janeiro: Editora Globo, 2019.


 


MANOVICH, L.; ARIELLI, E. Imagens IA e mídias generativas: notas sobre a revolução em curso. Revista Eco-Pós, v. 26, n. 2, p. 16–39. DOI https://doi.org/10.29146/ecops.v26i2.28175.


 


MINTZ, A. G. Midiatização e plataformização: aproximações. Novos Olhares, v. 8, n. 2, p. 98-109, 2019. https://doi.org/10.11606/issn.2238-7714.no.2019.150347.


 


NIELSEN, R. K.; S. A. GANTER. 2022. The Power of Platforms: Shaping Media and Society. New York:Oxford University Press, 2022.


 


SMYRNAIOS, N. 2016. L’effet GAFAM: Stratégies et Logiques de L’oligopole de L’internet. Communication & Langages 2 (188): 61–83, 2016. https://doi.org/10.3917/comla.188.0061.


 


VAN DIJCK, J.; POELL, T.; DE WAAL, M. The platform society: Public values in a connective world. Oxford university press, 2018.


 


[1] Disponível em: https://oglobo.globo.com/principios-editoriais/#transparencia-e-supervisao-humana


[2] Disponível em: https://www.bbc.co.uk/editorialguidelines/guidance/use-of-artificial-intelligence

Publicado
2025-05-18
Como Citar
ALVES, Kellyanne Carvalho; PAES, Paula de Souza. Recomendações dos grupos midiáticos para o uso da IA no jornalismo: uma análise das diretrizes do Grupo Globo e da BBC News. Anais de Resumos Expandidos do Seminário Internacional de Pesquisas em Midiatização e Processos Sociais, [S.l.], v. 1, n. 7, may 2025. ISSN 2675-4169. Disponível em: <https://midiaticom.org/anais/index.php/seminario-midiatizacao-resumos/article/view/1869>. Acesso em: 21 sep. 2025.