A Invisibilidade das doenças raras e a luta por seus medicamentos órfãos e a resistência dos movimentos sociais organizados

  • Patrícia Gonçalves Saldanha UFF - PPGMC
  • Adriana Santiago da Silva Ferreira
  • Letícia Santiago da Silva Ferreira

Resumo

Este estudo discute a necessidade de dar visibilidade à temática das doenças raras como um problema de saúde pública, pela difusão midiática, dada a sua complexidade e prevalência. As doenças que afetam até 65 indivíduos por 100 mil habitantes, são classificadas como raras, segundo a Organização Mundial de Saúde (OMS). No Brasil, a Política Nacional de Atenção Integral às Pessoas com Doenças Raras (PNAIPDRs) é um esforço para fornecer cuidados integrais e coordenados aos pacientes afetados por algum tipo de enfermidade rara (Ministério da Saúde, 2025).


Neste contexto, é notório que os movimentos sociais ligados às doenças raras venham criando estratégias de comunicação, como campanhas virais e divulgação de casos individuais, para amplificar a conscientização dos(as) brasileiros(as). Na contrapartida, a falta de cobertura midiática, em relação à escassez de fármacos essenciais, contribui com o sofrimento das pessoas que são direta ou indiretamente afetadas por um ou mais tipos de doenças raras. Destacaremos aqui, o caso dos pacientes com insuficiência adrenal (IA) e carcinoma adrenocortical (CAC), que vêm sofrendo com a negligência do Estado em relação ao mercado que opera no segmento.


Apesar da urgência do acesso às medicações hidrocortisona e mitotano, em todo o território brasileiro, esses remédios não chegam para todos que necessitam deles para garantir a própria vida. Em outras palavras, a falta de acesso aos fármacos fere a Constituição Federal de 1988 que institui a saúde como “um direito de todos e dever do Estado” (Constituição, 1988). A situação se agrava por estarmos em um país de dimensões continentais, o que aumenta as dificuldades no cumprimento desse dever fundamental.


Para consolidar a conjuntura, o Estado não tem posicionamento firme em relação à indústria farmacêutica que lucra com a circulação de determinados medicamentos no país. Logo, é crucial entender o funcionamento da estrutura pública para incorporação de remédios. A Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no Sistema Único de Saúde (CONITEC) foi fundada no Brasil em 2011, para ser o órgão assessor do MS, conferindo recomendações para decisões quanto à incorporação, exclusão ou alteração de novos medicamentos, produtos e procedimentos, assim como a elaboração e revisão de Protocolos Clínicos e Diretrizes Terapêuticas (PCDT) (Vicente et al., 2021).


No caso da insuficiência adrenal e do carcinoma adrenocortical, patologias que demandam tratamento contínuo com medicamentos específicos, lidamos com outra faceta alarmante da negligência no acesso à saúde: o silêncio midiático. Evidencia-se o esvaziamento da veiculação sobre a falta de hidrocortisona e mitotano por parte da grande mídia. Concomitantemente, cresce a organização de coletivos e grupos que representam e dão voz a pessoas com doenças raras.


Nesse sentido, é imperativo que a mídia hegemônica, respaldada pela prerrogativa de liberdade de imprensa, própria do Estado democrático, cumpra seu papel de informar a sociedade sobre o tema de modo a atender o interesse público, sem subsumir à catalaxia, ou seja, “um ordenamento mercadológico do mundo, para além de qualquer desígnio humano” (Sodré, 2002).


É essencial que se compreenda que tanto a liberdade de imprensa como a participação popular em prol da visibilidade desta causa, são medulares para promoção das mudanças políticas, econômicas e socioculturais de uma sociedade, sobretudo quando as informações sobre medidas práticas para resolução de problemas sociais, a exemplo da criação de políticas públicas para pessoas com doenças raras, começam a fazer parte do cotidiano do(a) cidadão(ã) comum. É preciso que a população seja alertada sobre a existência e a falta dos medicamentos essenciais disponíveis para consumo, pois o tempo urge e cada dia sem a medicação significa um dia a mais de sofrimento e, possivelmente, um dia a menos de vida.


Portanto, partimos da hipótese que a midiatização pode ser, tanto uma tática de resistência à invisibilidade sobre o assunto, como pode contribuir com um quadro de desinformação a partir do momento que apaga as reais dimensões dos impactos humanitários, consequentes da falta de fármacos essenciais para pessoas acometidas por determinadas patologias.


Entendemos que a midiatização é um “processo estratégico para o espraiamento da ideologia financeira neoliberal através da reorganização política do mundo e da reordenação das consciências.” (SODRÉ, 2014, p.109 ). Logo, o quadro de alienação que atravessa a sociedade atual pode, em grande medida, enfraquecer as iniciativas populares de resistência, ao mesmo tempo que pode consubstanciar a lógica neoliberal que atravessa as questões de saúde no país.


Deste modo, é premente que a divulgação da realidade enfrentada por milhares pessoas raras, seja feita pela própria fala, para sensibilizar autoridades impulsionando-as a cumprir seu papel de buscar por soluções que garantam o acesso pleno à saúde. Neste trabalho, enfatizamos as medidas direcionadas aos chamados “medicamentos órfãos”, denominação conformada a sua finalidade: prevenir, tratar e diagnosticar doenças raras, também conhecidas como “doenças órfãs” (Lacouture; Lacouture Cardenas, 2023). Em razão disso, muitas vezes são negligenciados pela indústria farmacêutica, que permite que a ótica capitalista e mercadológica se imponha, apresentando conflitos éticos, priorizando os interesses privados aos públicos. Por isso, os medicamentos para doenças raras deveriam ser vistos como questão de Estado (Mota et al., 2022).


Partimos do pressuposto que há um embate entre linhas de estudos sobre midiatização baseadas nas experiências que impulsionam os movimentos organizados a reagirem coletivamente, quando buscam alterar o presente que os afeta e o interesse financeiro de uma indústria que fortalece a lógica financeira que lhe fortalece. Então, a questão aqui não é o processo da midiatização para a difusão das doenças raras em si, mas a escolha da linha de investigação que dará visibilidade à causa. De um lado a perspectiva desenvolvida nos países do norte do globo, de outro, a perspectiva latina. Ambas consideram a mediação como ponto de partida, mas o entendimento dos conceitos é distinto.


Apesar das técnicas serem as mesmas, o propósito e o entendimento das comunicações não são pois, enquanto no norte global mediação é entendida enquanto “uso de um meio para comunicação e interação” (Hjarvard, 2015), na linha de pensamento latina a mediação se constitui no deslocamento do protagonismo dos meios, com foco na relevância das relações que as pessoas estabelecem com os meios. (Martin-Barbero ,2000). (Autor, 2022, p. )


 


Então, se lidamos com uma mídia hegemônica que usa meios de comunicação como um meio educativo para disseminação de seu próprio interesse enquanto, paralelamente, emergem os movimentos sociais que se organizam comunitariamente para reagir às imposições de mercado naturalizada pela mídia comercial.


Tais movimentos são formados por [...]uma associação que se inicia com a participação de uma única pessoa e em pouco tempo, [...] novos participantes se habilitam para ser parte da iniciativa que vira para cada um(a) de seus membros, uma comunidade. É o sentimento de comunidade que conduz o grupo para o entendimento comum da patologia que lhes afeta, a partir das trocas de experiências e […] passam a ter segurança de explanar suas novas descobertas nas redes. (Autor, 2024, p2).


 


É urgente que esses agrupamentos tenham controle de seu processo histórico e político, pois só quem lida com este grau de sofrimento é capaz de se representar. A Associação Brasileira Addisoniana (ABA) tem se mobilizado para assegurar o acesso a esses medicamentos, porém, a resposta governamental permanece aquém das necessidades. Nesse sentido, as associações de pacientes exercem um papel fundamental na defesa dos direitos e na promoção de políticas de saúde. A ABA e a Equipe Raras são exemplos de iniciativas que buscam melhorar a qualidade de vida dos pacientes, assim como a plataforma Saúdes Raras, desenvolvida na Universidade Federal Fluminense (UFF), que visa democratizar o acesso à informação sobre doenças raras, com a colaboração ativa da Equipe Raras, de diversos movimentos sociais e de parte do poder público do Rio de Janeiro.


No caso do tratamento da IA consiste na reposição de glicocorticoides (Charmandari et al., 2014; Pazderska; Pearce, 2017), geralmente, Hidrocortisona ou Prednisolona (Simpson; Brooke, 2021). Este último mais comumente receitado por diversos motivos, dentre eles, a indisponibilidade da Hidrocortisona no Brasil. No entanto, estudos recentes indicam a Hidrocortisona como a droga padrão-ouro para o tratamento da IA, devido ao menor risco de mortalidade (Ngaosuwan et al., 2021), a uma menor concentração sérica de colesterol-LDL, conferindo um possível menor risco de doenças cardiovasculares (Quinkler et al., 2016), e menor incidência de efeitos colaterais por maior similaridade ao cortisol endógeno, quando comparada à Prednisolona.


Apesar de ter sido formalmente incorporada ao sistema de saúde brasileiro através de publicação na Portaria n° 11 de 16 de Março de 2015 no Diário Oficial pela, então Presidente, Dilma Rousseff (Ministério da Saúde, 2015; Diário Oficial da União, 2015), a hidrocortisona, um medicamento órfão, considerado o padrão-ouro universal no tratamento da IA, paradoxalmente não está disponível de forma acessível no Brasil. Essa situação alarmante, motivada pela falta de interesse da indústria farmacêutica em um medicamento de baixo custo, logo, pouco lucrativa, expõe um grave descaso com os pacientes que dependem dessa substância vital.


Atualmente, o único local de produção da hidrocortisona no país é o Hospital das Clínicas em São Paulo, onde cada comprimido é comercializado a um custo de R$0,38. No entanto, o elevado valor do frete onera o tratamento, prejudicando especialmente os pacientes de baixa renda e/ou aqueles residentes em regiões distantes.


Apesar dos esforços e da crescente conscientização sobre o problema, nenhuma solução concreta foi apresentada até o momento. Ressalta-se, portanto, que a Associação Brasileira Addisoniana (ABA) permanece num forte movimento de resistência e conta com parcerias com a Univeraidade Federal Fluminense, com grupos de pesquisa, mobilizou um abaixo-assinado com mais de 40 mil assinaturas e além de ter levado a questão a audiências públicas, inclusive no Congresso Nacional, segue dedicada a mudar a história.

Biografia do Autor

Nome do Autor (Afiliação)

Profª Drª Associada do Departamento de Comunicação Social e membro permanente do Programa de Pós Graduação em Mídia e Cotidiano da Universidade Federal Fluminense (PPGMC/UFF) Mestrado (2003) e Doutorado (2009) em Comunicação e Cultura pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e Pós doutorado em Publicidade Sensorial na mesma instituição. Fundadora, Coordenadora Geral e líder pelo CNPq do Grupo de Pesquisa intitulado ‘Laboratório de Investigação em Comunicação Comunitária e Publicidade Social (LACCOPS). É membro fundadora do INPECC - Instituto Nacional de Pesquisa em Comunicação Comunitária. Contemplada pelo Edital “Apoio a grupos Emergentes de Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro (FAPERJ.2020-2024). Coordenadora do projeto “Plataforma ‘Saúdes Raras’ e Publicidade Social de Interesse Público”. Vice-Coordenadora (2012-2016) e Coordenadora (2016-2018) do GT de Cidadania do ALAIC; Coordenadora do Intercom Jr. Publicidade. (2015). Coordenadora do Intercom Jr. Cidadania(2016-2018). Atual Membro do Conselho Científico do Congresso Ibero-Americano de Publicidade, Vice-coordenadora do GT Comunicação e Cidadania da Compós e Coordenadora do GT Midiatização e Saúde do Midiaticom. Experiência na área de Comunicação, com ênfase em Comunicação Comunitária, Publicidade e Propaganda e Comunicação Comunitária. Coordenação de Eventos e Editoração e Produção Audiovisual, atuando principalmente nos seguintes temas: inclusão humanista no social, comunicação contra-hegemônica, Publicidade Social (comunitária, afirmativa, de interesse público, transversal, de causa), Planejamento Estratégico e de Campanha Publicitária. Significativa experiência no mercado profissional e publicação de artigos científicos em Periódicos e em anais de eventos acadêmicos Nacionais e Internacionais.

 

Publicado
2025-05-18
Como Citar
SALDANHA, Patrícia Gonçalves; DA SILVA FERREIRA, Adriana Santiago; DA SILVA FERREIRA, Letícia Santiago. A Invisibilidade das doenças raras e a luta por seus medicamentos órfãos e a resistência dos movimentos sociais organizados. Anais de Resumos Expandidos do Seminário Internacional de Pesquisas em Midiatização e Processos Sociais, [S.l.], v. 1, n. 7, may 2025. ISSN 2675-4169. Disponível em: <https://midiaticom.org/anais/index.php/seminario-midiatizacao-resumos/article/view/1914>. Acesso em: 21 sep. 2025.