Circulação midiatizada de casos de racismo: percepções teóricas e proposições metodológicas
Resumo
- Considerações introdutórias
Ao norte e ao sul do mundo, casos sociais de racismo passaram a ser visibilizados e denunciados no espaço público para além da mediação jornalística nos últimos 10 anos. Desde que Eric Garner, homem negro, estadunidense, assassinado por policiais em 2014, teve a morte filmada em vídeo, denunciada nas redes sociodigitais e posteriormente nos meios do jornalismo [televisão, rádio, sites e impressos], se sucedem anualmente casos de racismo registrados pelas câmeras de dispositivos celulares e propagados em dimensão planetária. No Brasil, casos de assassinatos cometidos por agentes de segurança contra pessoas negras e casos de racismo em geral por vezes também passam a ser visibilizados primeiro por atores sociais individuais. Essas denúncias são seguidas de práticas de coletivos de militância social para permanência das interações sobre o acontecimento no espaço público em lutas pela recordação do racismo, reconhecimento da humanidade das pessoas negras e responsabilização de instituições sociais e seus agentes.
Redes de solidariedade entre atores sociais negros, nos Estados Unidos, no Brasil e em outros países do Atlântico Negro (GILROY, 2012) são trançadas a partir de acontecimentos no espaço público ampliado pelas redes sociodigitais, meios do jornalismo e em protestos em co-presença nas ruas. Interpretações sobre a incidência do racismo e aprendizagens técnico-comunicacionais nos usos e apropriações de dispositivos midiáticos compartilhadas entre coletivos revelam características em parte análogas com percepções presentes na literatura dos estudos de midiatização e circulação midiática que têm como objetos de fundo outras temáticas sociais, e em parte singulares devido justamente ao que diz respeito ao racismo e ao antirracismo. Preliminarmente, é possível indicar como fenômenos semelhantes recorrentemente percebidos nos estudos de midiatização e circulação:
- a) Uma ambiência (Gomes, 2017) midiatizada como modo de organização social, que pode ser caracterizada pela presença simultânea de meios de comunicação massivos e redes sociodigitais, instituições sociais e atores sociais e suas operações, inclusive o engendramento de múltiplos coletivos e circuitos interacionais. Como aspecto derivado, a emergência de meios de interação e indexação (Ferreira, 2018) como o WhatsApp, Facebook, Instagram, Twitter ou X, Telegram, TikTok etc. possibilitam uma ampliação de acessos, usos e apropriações de redes sociodigitais para materialização de discursividades que passam a emergir e a circular no espaço público, inclusive denúncias contra o racismo e disputas de sentidos decorrentes.
- b) Os processos de circulação midiática em torno de casos de racismo envolvem disputas entre instituições sociais – principalmente do campo jurídico-policial -, atores individuais, coletivos que têm como arena os meios do jornalismo e tecnologias transformadas em meios de comunicação. Imagens, interpretações e tentativas desses entes para reconhecimento de discursos sobre o racismo e suas vítimas circulam em diferentes ambientes e na intersecção entre estes. Desse modo, os meios do jornalismo na mediação dos acontecimentos e das enunciações dos atores institucionalizados – destacando-se promotores de justiça, juízes, delegados, agentes de segurança - permanecem como espaço privilegiado para observação e tentativas de compreensão das disputas de sentidos, mesmo que em interpenetrações com as enunciações expressas nas redes online, uma vez que visibilizam o curso das investigações policiais e reconstituem as etapas dos acontecimentos.
- c) Se as instituições sociais e os meios comunicacionais massivos até o início do século XXI eram responsáveis pelo engendramento de coletivos (Verón, 2014), na última década atores sociais individuais passaram igualmente a criar coletivos a partir de acionamentos que resultam na criação de comunidades on-line independentes de instituições e do jornalismo (Carlón, 2019; 2023). No entanto, embora atores sociais individuais, sobretudo pessoas negras, acionem circuitos momentâneos ou mais duradouros para a ampliação da visibilidade e alcance das discussões em torno de casos de racismo, não raro possuem vínculos anteriores com coletivos cujos integrantes se reencontram nos espaços online de interação – o que vale tanto para coletivos ulteriores em territórios negros tradicionais diversos - das artes, da religião, da política e outros espaços culturais de aprendizagem -, quanto para coletivos configurados principalmente na ambiência midiatizada – por fãs e seguidores de perfis institucionais, de intelectuais e de artistas que disseminam saberes afro-referenciados nas redes sociodigitais.
- d) As singularidades e analogias dos casos e denúncias de racismo midiatizados no Brasil e nos Estados Unidos a reboque das visibilidades em múltiplos ambientes – em fluxo geográfico norte-sul e sul-norte do mundo – indicam não apenas relações de ampliação das escalas de tempo-espaço devido às interposições das redes sociodigitais, mas também das espacialidades e temporalidades simbólicas que remetem aos fluxos e atualizações da diáspora negra, da solidariedade a partir da recordação e experiência compartilhadas do sofrimento e de resistências culturais, políticas e estéticas.
Os quatro conjuntos de processualidades referidas e as percepções relacionadas derivam de observações e descrições de processos de circulação midiática em estudos de midiatização. As mudanças sociais em movimento e características singulares ‘caso a caso’ exigem do pesquisador, portanto, a criação de táticas de apreensão de acordo com características das temáticas, objetos de pesquisa e observáveis empíricos.
Para isso, o objetivo central deste estudo é apresentar possibilidades de apreensão metodológica da circulação de casos de racismo, primeiro contextualizando estudos de midiatização e circulação considerando práticas sociais e comunicacionais-midiáticas de coletivos e, em seguida, propondo caminhos teórico-metodológicos para análise da circulação desses casos. Por fim, esses caminhos teórico-metodológicos serão demonstrados em observações dos fluxos espaços-temporais em estudo de caso midiatizado configurado a partir de registro e publicação de vídeo no qual um professor brasileiro de música e uma professora Argentina imitam movimentos e sons de macacos durante roda de samba realizada no Rio de Janeiro em julho de 2024.
- Processos e esquemas de circulação em estudos sobre coletivos em midiatização
Um dos modelos precursores de análise de midiatização e circulação foi criado por Eliseo Verón nos anos 1990. O esquema leva considera as afetações e transformações mútuas provocadas pelos contatos de instituições sociais, meios e atores sociais individuais em diferentes momentos, a partir de situações exemplificadas pelo autor (Verón, 1997). Anterior às redes sociodigitais do século XXI, o modelo enfatiza os ‘campos de relação’ de instituições e meios com a formação de coletivos [representados pela inicial C], apontando para uma não-linearidade desse processo representada pelas flechas de dupla ponta (fig. 1).
FONTE - Verón, 1997, s.p..
Nas coberturas jornalísticas de casos de racismo, são recorrentes os acessos de atores do campo jurídico-policial como vozes autorizadas a realizarem interpretações mesmo quando autores de assassinatos [em relações análogas a C1 e C3]. Da mesma forma é possível conjecturar a respeito da maneira como espectadores elaboravam estratégias de consumo na vida cotidiana diante da estigmatização do negro no jornalismo e entretenimento (Sodré, 2015), enquanto o midiático pode perturbar as relações dos coletivos consumidores de mídia com o campo jurídico-policial e - em apropriação da discussão veroniana - acerca do racismo como ordem social [relações à lá C2 e C4].
Outras características da circulação interposta pela centralidade dos meios do jornalismo entram em cena com a ‘revolução do acesso’ à internet (Verón, 2013). Os meios massivos e as instituições passam a dividir o lugar de acervo de mediação do conhecimento on-line, fenômeno ampliado com a transformação de sites de redes sociodigitais em meios de comunicação na primeira década do século XXI.
Essa transformação na constituição de coletivos de atores sociais segue como preocupação na obra de Mario Carlón, situada temporalmente no que chama de uma ‘sociedade hipermidiatizada’ no contemporâneo. O autor considera como transformações da midiatização nos últimos anos a complexidade nas alterações de suas escalas, nas direções comunicacionais dos sentidos em circulação nos meios e acerca dos vínculos dos atores individuais com seus pares, mídias e instituições:
- a) A mudança de escala na midiatização segundo Carlón se materializa em alterações nos acessos de atores e coletivos aos espaços midiáticos, em transições dos sentidos que emergem do espaço privado para o espaço público e na ampliação de difusões de produtos midiáticos postos em circulação em meios massivos e redes sociodigitais. Essas mudanças conduzem à ampliação gradual dos coletivos de atores sociais e na maneira como são afetados.
- b) As direções comunicacionais são classificadas como ascendentes [quando os sentidos emergem das redes sociodigitais aos meios massivos], descendentes [dos meios massivos às redes sociodigitais] e horizontais [com circulação dos sentidos ‘desde dentro’ dos meios, ou seja, em interações entre atores sociais no interior de um meio comunicacional].
- c) As mudanças experimentadas por atores individuais que administram seus próprios meios nas redes, de acordo com diferentes etapas/fases nos casos midiatizados em circulação, dizem respeito a como eles e suas relações com outros partícipes do processo de circulação são afetados pelas ampliações de escala da midiatização e complexificação das direções comunicacionais.
A apreensão dessas transformações decorre de movimentos metodológicos de análises temporais e espaciais das práticas de coletivos. As análises temporais levam em conta fases e momentos dos casos sociais centrados nas relações de atores sociais entre si, com instituições sociais, midiáticas e coletivos, enquanto as análises espaciais compreendem os trânsitos de atores, práticas e discursos públicos postos em circulação entre meios massivos e digitais, espaços midiáticos (Fig. 2).
Fonte - Carlón, 2023, s.p..
O rastreio dos momentos de circulação para análise leva em conta aqueles considerados como mais importantes de acordo com o objeto de pesquisa elaborado pelo autor para compreender processos midiatizados. A partir das etapas de um dado acontecimento, são observados os fluxos dos discursos sociais produzidos por atores sociais coletivos intermeios em cada momento/fase de um caso ou entorno de um acontecimento.
Retroativamente, considero complementares os ângulos analíticos das categorias e modelos de circulação midiática e produção de coletivos das lógicas dos meios jornalísticos (Verón, 1997) e da midiatização contemporânea (Carlón, 2017; 2019; 2023) no que tange ao racismo e a práticas comunicacionais de resistência. Admitindo a complexidade dos fluxos e perturbações intrameios [horizontalidades] e entremeios [ascendências e descendências], a linha de corte dessa complementaridade abrange dois tipos de relações vinculativas: de instituições sociais e midiáticas em tentativas de interdição ou abreviação dos fluxos adiante de sentidos, de visibilidades em torno dos casos de racismo e da constituição de coletivos críticos ao antirracismo; e, inversamente, as possibilidades de perturbação desses vínculos pela circulação protagonizada pelos últimos para ampliação do alcance de narrativas de denúncia e favoráveis às memórias das vítimas.
- Apontamentos iniciais para apreensão da circulação midiatizada em casos de racismo
Em uma perspectiva espaço-temporal, os fluxos de sentidos levados adiante nos meios e as etapas dos acontecimentos contemporâneos, respectivamente, requerem para a análise a evocação de contextos sobre a realidade social concreta dos coletivos, de como se configuram previamente e de que maneira seus atores se (re)encontram nos meios, tanto em contatos momentâneos [entre indivíduos e grupos que interagem pela primeira vez em circuitos online configurados pela discussão em torno de acontecimentos], quanto em contatos precedidos por vínculos em outras ambiências. Ou seja, em reencontros de atores em um dado circuito interacional afro-referenciado a partir de momentos nos quais o(s) coletivo(s) considera(m) um dado acontecimento notável de discussão e disputa.
Alguns dos acionamentos comunicacionais de pesquisas sobre midiatização e (antir)racismo cujas materialidades podem ser cartografadas/mapeadas são: a) a construção de casos interpostos pelas mídias; b) a observação de temporalidades e espacialidades diversas; c) a identificação de disputas de sentidos sobre o negro e o racismo; d) a identificação de coletivos acionados por outros coletivos, instituições sociais, instituições midiáticas, atores sociais e circuitos interacionais[1]. Com relação à identificação de coletivos, interessam os coletivos negros e afro-referenciados e os circuitos interacionais que acionam, engendrados na circulação midiática. A título de ilustração, os gestos discriminatórios de um casal de professores de música em uma roda de samba no Rio de Janeiro são um caso de racismo ocorrido em julho de 2024, ao mesmo tempo de caráter social, midiático e midiatizado, que demonstra os diferentes acionamentos comunicacionais interpostos a processos de constituição de coletivos. A propósito, este é o caso social, midiático e midiatizado a ser desdobrado em análise do artigo derivado deste resumo expandido.
Referências
CARLÓN, Mario. El poder del humor en una sociedad hipermediatizada: Recursos homorísticos y saltos hipermediáticos. In: BURKART, Mara; FRATICELLI, Damián; y VÁRNAGY, Tomás (coord.). In: El Humor Hipermidiático: uma nueva era de la mediatización reidera. Buenos Aires: Teseo, 2023. Disponível em: https://www.teseopress.com/arruinandochistes/chapter/el-poder-del-humor-en-una-sociedad-hipermediatizada/. Acesso em: 12 mai. 2024.
CARLÓN, Mario. Individuos y colectivos en los nuevos estudios sobre circulación. In: Mediaciones de la Comunicación, v. 14, n. 1, p. 27-46, Montevideo (Uruguai), 2019. Disponível em: https://revistas.ort.edu.uy/inmediaciones-de-lacomunicacion/article/view/2884. Acesso em: 14 jun. 2023.
CARLÓN, Mario. La cultura mediática contemporânea: otro motor, otra combustión (segunda apropriacion de la Teoría de la Comunicación de Eliseo Verón: la dimensión espacial). In: CASTRO, Paulo César (org.). A circulação discursiva: entre produção e reconhecimento. Maceió: EDUFAL, 2017. p. 25-48.
FERREIRA, Jairo. A construção de casos sobre a midiatização e a circulação como objetos de pesquisa: das lógicas às analogias para investigar a explosão das defasagens. Galáxia (São Paulo, online), n. 33, p.199-213, set.-dez., 2016.
FERREIRA, Jairo. Meios, dispositivos e médium: genealogia e prospecções na perspectiva da midiatização. In: FERREIRA, Jairo; ROSA, Ana Paula; BRAGA, José Luiz; FAUSTO NETO, Antônio; GOMES, Pedro Gilberto. (org.). Entre o que se diz e o que se pensa: onde está a midiatização?. Santa Maria: FACOS-UFSM, 2018. V. 1. p. 283-298.
FERREIRA, Jairo. Uma abordagem triádica dos dispositivos midiáticos. LÍBERO, São Paulo, no 17, Jun. 2006. Disponível em: https://casperlibero.edu.br/wp-content/uploads/2014/05/Uma-abordagem-triádica-dos-dispositivos-midiáticos.pdf. Acesso em: 14 set. 2021.
GILROY, Paul. O Atlântico negro: Modernidade e dupla consciência. Tradução de Cid Knipel Moreira. 2 Ed. São Paulo: Editora 34; Rio de Janeiro: Editora Candido Mendes, Centro de Estudos AfroAsiáticos, 2012.
GOMES, Pedro Gilberto. Dos meios à midiatização: um conceito em evolução. 1. ed. São Leopoldo: Editora Unisinos, 2017. v. 1. 175p.
SODRÉ, Muniz. Claros e escuros: Identidade, povo, mídia e cotas no Brasil. 3 ed. Petrópolis: Vozes, 2015.
VERÓN, Eliseo. Esquema para el análisis de la mediatización. Diálogos de la comunicación. N. 48. Lima: Felafacs, 1997. p. 9 - 17. Disponível em: <https://comycult.wordpress.com/wp-content/uploads/2014/04/veron_esquema_para_el_analisis_de_la_mediatizacion.pdf>. Acesso em: 04 fev. 2016.
VERÓN, Eliseo. La Semiosis Social, 2: Ideas, momentos, interpretantes. 1. ed. Buenos Aires, Barcelona, México: Paidós, 2013.
[1] Embora apresentados individualmente para fins didáticos, são acionamentos e processualidades que se correlacionam mutuamente.