A midiatização da política e seu impacto nos movimentos sociais: abordagens teóricas

  • Alana Nogueira Volpato Universidade Estadual Paulista
  • Caroline Kraus Luvizotto Universidade Estadual Paulista

Resumo

Diante da tarefa de compreender como a midiatização se instaura no campo político, é preciso olhar para o conjunto heterogêneo de atores que, direta ou indiretamente, com variados níveis de institucionalização, com mais ou menos chances de influência, participam desses processos. Boa parte das pesquisas em midiatização da política privilegia atores do sistema político institucional, como governantes, políticos ou partidos, e suas relações com os meios de comunicação de massa.


Menos atenção tem sido dedicada a atores que não compõem o centro do sistema político institucional, mas, com suas especificidades, também configuram o campo político por meio de suas práticas, repertórios, modos de fazer e participar. Meyen et al (2014) explicam que partidos, grupos de interesse e organizações não-governamentais também consideram critérios da mídia ao pensar seus recursos e estratégias, tanto influenciando como sendo influenciados pela intersecção entre mídia e política. Donges e Jarren (2014) tratam o processo de midiatização da política no âmbito das organizações, como grupos de pressão e advocacy, que possuem objetivos, estratégias e recursos que podem gerenciar, colocando-se como pontes que estabelecem relações entre a sociedade e a política.


Visando alargar esse escopo, pretendemos discutir os processos de midiatização da política por meio de movimentos sociais, cuja dimensão performática ganhou importância na medida em que reivindicações entre demandantes e os grupos aos quais elas se direcionam passaram a ser constantemente mediadas pela mídia e pela opinião pública (Tarrow, 2011).


É evidente que, como os demais atores políticos contemporâneos, movimentos sociais sustentam um largo espectro de interações com mídias e tecnologias de comunicação. A abordagem da midiatização nos permite questionar quais são as transformações decorrentes desse uso tático da mídia para os próprios movimentos, como também para a cultura política na qual se inserem, em curto ou longo prazo. São objetos de interesse os desafios, as incoerências, os usos antagônicos, os dilemas e possíveis redirecionamentos desse processo.


Braga (2018) explica que as diferentes definições do conceito de midiatização permitem apreender determinados aspectos dos fenômenos observados e, portanto, a escolha deve ser feita em virtude dos objetivos de conhecimento da pesquisa. Assim, este artigo pretende discutir como duas abordagens teóricas, a institucional e a sócioconstrutivista, permitem pensar as relações entre movimentos sociais e os processos de midiatização, enfatizando quais aspectos cada perspectiva pode revelar.


Para isso, apresentamos a perspectiva institucional na visão de Hjarvard (2012, 2014, 2015), discutindo as transformações decorrentes da sobreposição de lógicas institucionais e da assimilação dos padrões midiáticos por atores dos demais campos sociais. Na sequência, apresentamos a perspectiva socioconstrutivista proposta por Braga (2006, 2012, 2018), discorrendo sobre os processos interacionais de experimentação, informais e ainda pouco instituídos, bem como sobre as formas de circulação de sentidos características da midiatização.


Para Hjarvard (2012, 2014), pesquisador da vertente institucional, a mídia passou a ocupar papel central em diferentes âmbitos da sociedade por assumir certa independência como instituição, enquanto os meios de comunicação são solicitados por agentes de todos os demais campos sociais, compondo sua dinâmica de funcionamento.


As instituições, além de oferecerem recursos materiais que viabilizam as interações sociais, também fornecem regras que podem ser explícitas, como as leis, ou implícitas, como as normas. Ao mesmo tempo em que permitem um terreno comum para a interação, as regras são limitantes porque direcionam as práticas sociais (Hjarvard, 2014). A mídia exerce influência por meio de lógicas, expressas em seus recursos e regras, conforme os meios de comunicação são acionados nas interações.


Por mais que a mídia tenha se constituído como instituição, a princípio, em torno dos meios de comunicação de massa, suas organizações e profissões, mídias digitais também possuem propriedades institucionais, inclusive, passando por organizações que tanto fornecem tecnologia quanto conhecimento profissional especializado, levando a uma diversificação de novas lógicas de mídia e possibilitando que cada vez mais atores de outros campos atravessem a instituição midiática (Hjarvard, 2015).


Essa perspectiva satisfaz a necessidade de entender de que forma a mídia passou a exercer influência sobre os demais campos sociais com um caráter diferenciado, por ter se tornado essencial para o funcionamento das demais instituições. Partindo de uma origem estruturalista, essa proposta tende a valorizar a incidência das lógicas de mídia sobre a sociedade, em detrimento de uma visão que permita equilibrar como o acionamento dessas lógicas por atores das demais instituições leva, também, a mudanças nos padrões estabelecidos. Focando no institucionalizado, este enfoque não abrange os aspectos experimentais, nos quais a sociedade ainda não desenvolveu regras claras para lidar com a mídia e, nem por isso, deixa de fazê-lo.


As contribuições de José Luiz Braga, buscam compreender como as formas de interação que constroem a ordem social são transformadas pela presença dos diferentes meios de comunicação na vida cotidiana e dão menos ênfase aos aspectos estruturais da mídia como instituição. Braga (2006) explica como a predominância de interações midiatizadas, a caminho de se tornar o processo interacional de referência, altera a dinâmica de construção social da realidade. Interiorizamos lógicas de processos interacionais porque eles permeiam nossa socialização que, na contemporaneidade, passa pela transição da cultura escrita para a midiatização.


Na midiatização, as interações são permeadas por formas de expressão além da verbal, já que imagens, sons e experiências podem ser acionados. Como produtos midiáticos podem ser armazenados, acessados e reproduzidos, inclusive com reelaborações, em momentos diferidos e em buscas difusas, as interações passam, cada vez mais, pelo “acervo dinâmico da rede informatizada e ao modo de referência a esse acervo” (Braga, 2006, p. 20). Tais interações desencadearam mais processos sociais de atravessamento entre mídia e sociedade, incluíram mais participantes nesses processos e permitiram, efetivamente, mais participação ativa (Braga, 2006).


Superando um modelo de comunicação que diferenciava emissores e receptores, os processos de midiatização estabelecem um sistema de circulação interacional, pelo qual os produtos midiáticos circulam em ambientes variados, para além daqueles aos quais se destinam originalmente, com menos possibilidades de controle (Braga, 2012).


Para Braga (2012), a midiatização não é marcada apenas pela influência de lógicas de mídia, nem só por resistência a elas, mas pela experimentação social com as interações midiatizadas. Essa experimentação, quanto menos pautada em padrões estabelecidos, tem resultados mais incertos.


Em um contexto marcado pela mudança das formas de interação, comunicação e construção social da realidade, em que as instabilidades são muitas tanto nos padrões acumulados para ação quanto nas formas de organização da vida social, os processos tentativos podem ser, nas palavras de Braga (2012), canhestros, assumindo resultados imprevistos ou indesejados. Nesse sentido, os atores políticos que experimentam interações pela mídia, em seus diversos formatos, de acordo com seus objetivos, não sabem exatamente quais serão os resultados alcançados ou consequências de negociar suas lógicas próprias e as da mídia no longo prazo.


Explorando as vertentes institucional e socioconstrutivista, pretendemos abordar algumas implicações teóricas para pensar os movimentos sociais e os processos de midiatização da política. Movimentos sociais contemporâneos, inseridos em um cenário de mudança nas formas de ação política, buscam encontrar caminhos possíveis para mobilizar pessoas, organizarem-se e defender suas pautas. Certamente, são influenciados por lógicas de mídia nesse processo. Mas carregam consigo, também, suas próprias lógicas, desenvolvidas ao longo dos anos, em um contexto histórico, social e político.


Entendemos que movimentos sociais são organizações com recursos materiais e simbólicos, que possuem um corpo de conhecimento acumulado e compartilhado sobre as formas de se fazer reivindicações, não apenas no âmbito das experiências desenvolvidas por um grupo específico, mas no contexto mais amplo, que oferece um leque de opções de protesto historicamente convencionadas, comunicadas e aprendidas, constituindo um terreno comum para a política contestatória. Por meio de sua atividade cotidiana ao longo do tempo, sustentam repertórios, “padrões de ação que estão culturalmente disponíveis aos atores em um determinado contexto sócio histórico” (Tilly, 2010, p. 147).


Downey e Rohlinger (2015) explicam que movimentos sociais são orientados por lógicas, construídas coletivamente, sobre como as mudanças sociais devem acontecer e quais são os meios adequados para isso. Ou seja, além de identificarem objetivos, fins, possuem uma orientação estratégica que trata sobre os meios para alcança-los, dependendo de sua identidade e posicionamento político e ideológico, que levam a um repertório preferencial de ação.


Nesse sentido, a perspectiva institucional pode compreender como os processos de midiatização favorecem a aproximação desses repertórios às lógicas do campo social da mídia. Isso é particularmente perceptível nos momentos de visibilidade, nas performances que recorrem a recursos midiáticos ou que são pensadas para direcionar atenção pública, com base no conhecimento que atores de movimentos sociais possuem sobre a mídia. Recorrer aos padrões interacionais já estabelecidos pela mídia, por um lado, pode oferecer alguma previsibilidade. Por outro, é possível que, buscando visibilidade, direcionamento da atenção pública e influência sobre o sistema político institucional, movimentos sociais optem por adotar lógicas midiáticas que, mesmo contribuindo para alcançar determinados resultados, são incompatíveis com seus pressupostos – suas próprias lógicas.


Ao mesmo tempo, entendemos que os movimentos sociais experimentam as lógicas midiáticas, os processos e as ferramentas da mídia para enfrentar seus desafios. Historicamente, tais atores desenvolveram processos midiáticos adequados aos seus interesses, o que é diferente de terem sido apenas influenciados pela mídia e experimentam outras formas de comunicação e também suas contradições.


Entendemos que a perspectiva institucional e a sócioconstrutivista oferecem uma base analítica complementar que permite considerar as dinâmicas complexas da midiatização da política. Por um lado, quando movimentos sociais optam por assumir, continuamente, lógicas midiáticas em detrimento de suas próprias, visando garantir bons resultados em termos de cobertura midiática ou circulação em mídias digitais, passam a ser conformados pela mídia. Por outro, quando desenvolvem experiências tentativas adequadas aos seus valores, transgredindo lógicas estabelecidas, reconfiguram a dinâmica da própria arena política.


Nesse sentido, mais que olhar para usos e procedimentos operacionais, podemos perceber a midiatização como um processo gerador de tensionamentos, que leva a novas formas de mobilização, reivindicação e participação. Quais constrangimentos são colocados para os movimentos sociais nesse contexto? Que cultura de mobilização política emerge da intersecção com lógicas midiáticas? Como a midiatização dos movimentos sociais altera as dinâmicas do campo político? Essas são algumas questões fundamentais para compreender os processos de midiatização da política que envolvem movimentos sociais.


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Referências

 


BRAGA, José Luiz. Mediatização como processo interacional de referência. Animus, v. 5, n. 2, 2006, p. 9-35.


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Downey, d, j; Rohlinger, d. a.. Linking strategic choice with macro-organizational dynamics: strategy and social movement articulation. In: Research in Social Movements, Conflicts and Change, p. 3-38, 2015.


DONGES, Patrick; JARREN, Otfried. Mediatization of Political Organizations: changing parties and interest groups? In: ESSER, F; STRÖMBACK, J. Mediatization of politics: understanding the transformation of western democracies. Palgrave Macmillan, 2014, p. 181-199.


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Biografia do Autor

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Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Unesp - Universidade Estadual Paulista. Bolsista da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo, processo n. 2019-00781-9. Mestre em Comunicação (2015), especialista em Comunicação Popular e Comunitária (2018) e bacharel em Comunicação Social – Relações Públicas (2011) pela UEL - Universidade Estadual de Londrina. Membro do Grupos de Pesquisa Comunicação Midiática e Movimentos Sociais - ComMov desde 2018.

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Bacharel (2000), mestre (2003) e doutora (2010) em Ciências Sociais pela Unesp – Universidade Estadual Paulista. Realizou estágio de Pós-doutorado na Universidade Nova de Lisboa – Portugal (2020). Desde 2013, ocupa o cargo de Professor Assistente Doutor na Unesp e desde 2014 integra o corpo docente permanente do Programa de Pós-graduação em Comunicação da mesma instituição. Líder do Grupo de Pesquisa Comunicação Midiática e Movimentos Sociais – ComMov. Afiliação institucional: Universidade Estadual Paulista – Unesp, Brasil. Área de interesse: Comunicação, Cidadania e Movimentos Sociais. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-2132-4616.

Publicado
2022-11-05
Como Citar
VOLPATO, Alana Nogueira; LUVIZOTTO, Caroline Kraus. A midiatização da política e seu impacto nos movimentos sociais: abordagens teóricas. Anais de Resumos Expandidos do Seminário Internacional de Pesquisas em Midiatização e Processos Sociais, [S.l.], v. 1, n. 5, nov. 2022. ISSN 2675-4169. Disponível em: <http://midiaticom.org/anais/index.php/seminario-midiatizacao-resumos/article/view/1397>. Acesso em: 07 maio 2024.