Cotidianos midiatizados e jovens vulnerabilizados: enquadramentos da juventude na construção da notícia

  • Iris Menezes de Jesus UFF

Resumo

O presente artigo visa abordar os discursos jornalísticos pautados na teoria do enquadramento através da leitura crítica da mídia[1], atravessados pelo conceito de midiatização. Ressalta-se que utilizaremos a midiatização como categoria de análise, deste modo, adotamos Stig Hjarvard como principal referencial teórico. Sendo assim, o trabalho objetiva compreender como as manchetes dos veículos de imprensa no meio digital, podem influenciar na construção de cotidianos e processos de subjetivação de jovens vulnerabilizados, pautados no processo de midiatização.


A análise será realizada a partir de manchetes retiradas de plataformas virtuais, de dois grandes jornais online, quais sejam, G1 e Jornal O Dia. As reportagens foram colhidas entre os meses de novembro a fevereiro de 2021.


Deste modo, a abordagem utilizada para compreensão e análise da produção noticiosa é a teoria do enquadramento, que nos ajudará a pensar sobre as afetações da mídia no público, e suas formas de pensar e agir a partir da influência dos meios de comunicação.


Segundo Goffman (1986), os enquadramentos representam princípios organizacionais que governam eventos sociais e nosso envolvimento nesses eventos.  “Neste enfoque, enquadramentos são entendidos como marcos interpretativos mais gerais construídos socialmente que permitem às pessoas fazer sentido dos eventos e das situações sociais” (PORTO, 2002, p. 4). Desta forma, pretende-se utilizar o conceito de enquadramento juntamente com o conceito de midiatização cunhado por Hjarvard (2012) que descreve midiatização como um conceito chave para compreensão da influência da mídia na cultura e na sociedade. Termo que tem sido usado em diferentes contextos para caracterizar a influência que a mídia exerce sobre diversos fenômenos (HJARVARD, 2012).


Antes de adentrar nas análises propriamente ditas pretende-se debater brevemente o conceito de juventude e as mazelas desta fase do desenvolvimento como uma construção cultural e social, repleta de diversidades e heterogeneidades, sendo impossível defini-la de modo isolado de suas condições e relações sociais. Conceito este que muitas vezes está submetido a, ou torna-se dependente da mídia e de sua lógica (HJARVARD, 2012), já que os veículos midiáticos, aqui especificamente os veículos de imprensa, tendem a abordar a juventude de maneiras diferentes a depender da classe social a qual está imersa.  


Sendo assim, é preciso (re)pensar o papel da mídia enquanto formadora de opinião em um mundo midiatizado, já que reportagens estigmatizantes, sobretudo ao retratar jovens, não só acabam por reforçar estereótipos e preconceitos como também comportamentos e ações influenciados por discursos midiáticos. Krotz concebe a midiatização como um processo contínuo em que os “meios alteram as relações e o comportamento humanos e, assim, transformam a sociedade e a cultura” (KROTZ apud HJARVARD 2012, p. 59).


 Por isso, uma leitura crítica da mídia é fundamental para repensarmos os fenômenos midiáticos e socias.  A Educação Crítica para as Mídias poderia romper com os “espetáculos sedutores que fascinam os ingênuos e a sociedade de consumo, que envolvem a semiótica de um mundo novo de entretenimento, informação e consumo, que influencia profundamente o pensamento e a ação” (KELLNER, 2001, p. 11). Deste modo, considerando os conceitos abordados, este artigo pretende analisar conteúdos jornalísticos sobre juventude relacionando as questões aqui levantadas.



  1. Juventudes: conceitos e debates acerca da temática


Para se ter uma visão mais ampla sobre as demandas que envolvem a juventude faz-se necessário primeiramente debater algumas questões sobre a temática, como forma de compreender essa fase da vida e as relações existentes entre juventude, midiatização e processos de construção das notícias.


Para Bourdieu (1983 apud CARRANO, 2009), juventude é apenas uma palavra, que para ser entendida precisa estar relacionada aos contextos nos quais se insere e nas relações estabelecidas entre os diferentes grupos sociais. Sendo assim, juventude refere-se a diversas circunstâncias da vida, cotidianos, classes sociais e contextos socioculturais no qual o jovem está inserido, não se podendo simplesmente tentar delimitar o conceito de juventude[2] já que este é marcado por imprecisões conceituais e sociais.


 



  1. Referencial teórico e metodológico


 


Conforme relatado anteriormente esse artigo analisará as manchetes jornalísticas de dois portais de notícias digitais, quais sejam, o G1, e o Jornal O Dia. Ambos de linguagem popular e acessível com alcance massivo. Foi selecionado pela pesquisadora, através da leitura flutuante, apenas reportagens do Estado do Rio de Janeiro, entre os meses de novembro de 2021 a fevereiro de 2022, limitando-se assim a um recorte espacial e temporal.


Para isso a metodologia escolhida foi a do enquadramento juntamente com literacia midiática[3] considerando a sociedade e cultura midiatizadas. As abordagens para analisar o enquadramento são diversas e buscam compreender os critérios a partir dos quais a notícia é construída e as consequências destes recortes para a interpretação da mesma.


O conceito de enquadramento é relativamente recente, segundo Porto (2002), os estudos começaram com o livro Frame Analysis, escrito pelo sociólogo Erving Goffman em 1986, Goffman desenvolveu sua primeira articulação teórica sobre o tema, aplicando-o à análise das interações sociais. Em relação ao uso do termo no jornalismo, Robert Entman foi quem trouxe esse conceito, que só ganhou força no Brasil a partir da década de 1980.


A partir de então pretende-se explorar o conceito de leitura crítica da mídia, de acordo com a definição proposta pela National Leadership Conference on Media Literacy realizada nos Estados Unidos em 1992, isto é, leitura crítica da mídia, seria “a habilidade de acessar, analisar, avaliar e comunicar mensagens numa variedade de formatos” (AUFDERHEIDE, 1993; CHRIST & POTTER, 1998 apud LIVINGSTONE, 2011).


 



  1. Análise das manchetes e a midiatização


 


No portal do G1 a manchete retrata seguinte situação: “Jovem é preso e menor apreendido com drogas durante festa em volta redonda”, a problemática da reportagem, é o uso da palavra “menor[4]”. Primeiramente a manchete traz a palavra “jovem” provavelmente se referindo a uma pessoa maior de 18 anos envolvido em um ato delituoso, posteriormente é trazido o termo “menor” para se referir a um adolescente também envolvido na ação. 


Vejamos a questão, está claro aqui, que o autor da reportagem está se referindo a dois sujeitos, um maior de idade e outro menor de idade, essa questão em si não é um problema, ocorre que o puro e simples uso da palavra “menor” conduz a um estigma típico desse público. Isso porque, além de estigmatizante, é inadequada, já que tal expressão com o advento Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), em 1990, e das demais garantias legais[5] em relação a crianças e adolescentes, passou a ser apontada como inapropriada e equivocada.


Analisaremos agora a manchete do Jornal O Dia, que aponta: “Polícia militar captura menor que furtava uma casa em Itaipuaçu”, logo após o subtítulo ressalta “O adolescente foi encaminhado para a 82ª Delegacia no Centro de Maricá onde o caso foi registrado”, notamos mais uma vez o uso da palavra menor na manchete, e o uso da palavra adolescente logo em seguida no subtítulo, assim como ocorreu na análise de uma das manchetes do portal anterior, percebemos aqui que o repórter utiliza o termo pejorativo mesmo conhecendo a nomenclatura adequada a ser utilizada, no entanto, nessa reportagem ainda é possível observar um outro fato.


Assim como é comum a reportagem possui uma imagem em que aparece a delegacia em questão, ainda que esse trabalho tenha optado por não analisar imagens e suas legendas, nesse caso, faz-se importante uma nota, já que a legenda traz a seguinte frase “O menor delinquente foi levado pela PM para a 82ª DP no centro onde o caso foi registrado”, ou seja, nota-se que a uma constante contradição no texto da reportagem, em que em momentos diferentes o repórter se utiliza de diversos termos para se referir a um jovem cometendo um delito, sendo o termo utilizado na legenda da imagem o mais estigmatizantes de todos, já que o uso da palavra “menor” vem acompanhado de “delinquente”, ainda que aparentemente o adolescente tenha sido capturado em flagrante delito o termo delinquente é extremamente vexatório que vai de encontro ao artigo 18 do ECA, que prevê que todos devem zelar pela dignidade da criança e do adolescente, pondo-os a salvo de qualquer tratamento desumano, violento, aterrorizante, vexatório ou constrangedor.


E como a midiatização entra nesse contexto? De acordo com Bittencourt (2015), ao explicar os conceitos de midiatização cunhado por Hjarvard, a autora esclarece que as consequências da midiatização dependem do contexto e das características dos meios, segundo ela, Hjarvard acredita que a adoção das redes na comunicação dos movimentos interfere na influência da mídia de massa e no seu papel de formadora de opinião. Isto é, a constante veiculação de notícias a depender de seu enquadramento nos meios influencia diretamente a formação da opinião pública, notando-se assim a clara interação entre mídia e sociedade.


Neste sentido, podemos notar a relação entre enquadramento e midiatização já que ambos estão atravessados pela mídia e sua lógica, podendo agir como um agente de mudança cultural e social. Isto é, os enquadramentos se fazem presentes no cotidiano graças a uma sociedade midiatizada, em que a mídia “é, ao mesmo tempo, parte do tecido da sociedade e da cultura e uma instituição independente que se interpõe entre outras instituições culturais e sociais e coordena sua interação mútua” (HJARVARD, 2012, p.54-55). Essa interação mútua entre sociedade e mídia, como já destacado, pode ser percebida através dos enquadramentos, já que estes são influenciados por valores, opiniões e ideologias da mesma forma que influenciam na construção de novos modos de pensar e agir.


 



  1. Considerações finais


 


Ao longo do artigo notamos diversas questões sobre como as notícias possuem enquadramentos, e em um mundo midiatizado, podem propiciar uma interpretação ou até mesmo uma avalição moral dos fatos noticiados, eles são capazes de definir e construir uma realidade, e quando tratamos de juventude essa problemática se torna ainda mais sensível, tendo em vista que tratam-se de sujeitos em desenvolvimento, e a mídia pode servir como um dispositivo de produção de suas subjetividades.


É preciso compreender que os jovens são envoltos por um processo de mudança constante e, o que é mais importante, é um período fundamental da vida do indivíduo, em que será moldada a sua personalidade (BOURDIEU, 1983). Logo, notícias como as quais analisamos reforçam um estereótipo da juventude vulnerabilizada, o que pode contribuir para segregação e exclusão desse público, bem como, influenciar na construção de seus cotidianos e modos de ser e estar no mundo. 


Referências bibliográficas:


 


BOURDIEU, Pierre. A juventude é apenas uma palavra. In: BOURDIEU, Pierre. Questão de sociologia. Rio de Janeiro, Marco Zero, 1983.


 


BITTENCOURT, Maria Clara Aquino. Midiatização e circulação nos movimentos sociais em rede: o impacto das tentativas comunicacionais nas relações entre mídia e sociedade. C&S – São Bernardo do Campo, v. 37, n. 3, p. 321-342, set./dez. 2015.


BRASIL. Presidência da República. Casa Civil. Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990. Estatuto da Criança e do Adolescente. Brasília, 1990.


BUCKINGHAM, D. Media Education: Literacy, Learning and Contemporary Culture. Cambridge: Polity Press, 2003.


CARRANO, Paulo Cesar Rodrigues. Jovens, escolas e cidades: entre diversidades, desigualdades e desafios à convivência. In: II Colóquio Luso-Brasileiro de Sociologia da Educação. Porto Alegre, 2009.


FERRÉS, J.; PISCITELLI, A. Competência midiática: proposta articulada de dimensões e indicadores. Lumina, Juiz de Fora, v. 9, n. 1, p. 1-16, 2015.


GOFFMAN, Erving. Estigma: notas sobre a manipulação da identidade deteriorada. Rio de Janeiro: Zahar, 1975.


KELLNER, Douglas. A cultura da mídia. Estudos culturais, identidade e política entre o moderno e o pós-moderno. Bauru, Edusc, 2001.


LIVINGSTONE, S. Making Sense of Television–The psychology of audience interpretation. 2 ed. Nova York: Routledge, 2007.


_______. Internet literacy: a negociação dos jovens. Matriz, São Paulo, p.11-42, 2011.


com as novas oportunidades on-line1


 


MCDOUGALL, J.  Media literacy: An incomplete project. In: ABREU, B.; MIHAILIDIS, B. (Ed.). Media literacy education in action: Theoretical and pedagogical perspectives. NovaYork: Routledge, 2014.p.3-10.


 


PORTO, Mauro. Enquadramento da mídia e política. In: Comunicação e política- conceitos e abordagens. Salvador/São Paulo: Edufba/Editora Unesp,2004.


POTTER, W. J. Introduction to Media Literacy. 4 ed. Londres: SAGE Publications, 2016.


 


[1] Neste trabalho estamos chamando de mídia os discursos jornalísticos propriamente dito, já que mídia é um conceito amplo e abrange os diversos meios de comunicação, tendo sido adotado aqui os veículos de imprensa no meio digital.


[2] No Estatuto da Juventude – Lei 12.852/2013, são considerados jovens indivíduos entre 15 e 29 anos; De acordo com o artigo 2º do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) – Lei 8.069/1990, adolescentes são aqueles com idades entre 12 e 18 anos incompletos. Já o discurso oficial do Ministério da Saúde, para fins de planejamento de ações na área da saúde voltado para adolescentes e jovens, define a adolescência e juventude com limites etários compreendidos em: 10 a 14 anos – jovens; 15 a 19 anos – adolescentes/ jovens; e de 20 a 24 anos – adultos jovens.


[3] Ferrés   e   Piscitelli (2015), propõem   o   conceito   de competência   midiática, que   tem   por   objetivo   contribuir   para   o desenvolvimento da autonomia pessoal de cidadãos bem como o seu compromisso  social  e  cultural,  abrangendo  tanto  a  maneira  como  os conteúdos   midiáticos   são   consumidos,   quanto   o   modo   como   são produzidos.


[4] O termo menor provém da doutrina da situação irregular que não se preocupava com os direitos humanos da população infanto-juvenil. Limita-se a assegurar a proteção para os carentes e abandonados e a vigilância para os inadaptados e infratores. (COSTA, 2006). 


[5] Constituição da República Federativa do Brasil - CRFB (1988) e Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo (SINASE) Lei nº 12.594 de 2012.

Publicado
2022-11-07
Como Citar
DE JESUS, Iris Menezes. Cotidianos midiatizados e jovens vulnerabilizados: enquadramentos da juventude na construção da notícia. Anais de Resumos Expandidos do Seminário Internacional de Pesquisas em Midiatização e Processos Sociais, [S.l.], v. 1, n. 5, nov. 2022. ISSN 2675-4169. Disponível em: <http://midiaticom.org/anais/index.php/seminario-midiatizacao-resumos/article/view/1537>. Acesso em: 07 maio 2024.