Sapiens midiatizado: conhecimentos comunicacionais na constituição da espécie

Este livro é um dos resultados do IV Seminário Internacional de Pesquisas em Midiatização e Processos Sociais, realiza- do em 2020/2021. O IV Seminário Internacional de Pesquisas em Midiatização e Processos Sociais teve uma programação desenvolvida em dois níveis: Mesas de Debate, com pesquisadores convidados (5 mesas, com participação de pesquisadores da Suécia (2), Argentina (2), e brasileiros (9, incluindo os 5 do PPGCC-Unisinos). A programação do IV Seminário e sua estru- tura podem ser vistas em https://www. midiaticom.org/seminario-midiatizacao/ programacao-2020/. Neste IV Seminário, o tema das Mesas foi "SAPIENS MIDIATIZADO: A CONSTRUÇÃO SOCIAL DO CONHECIMENTO ENTRE INTE- RAÇÕES, MEIOS, CIRCULAÇÃO E MEDIAÇÕES SOCIAIS". Com sapiens midiatizado queremos nos referir a diversos processos midiáticos em suas relações com as transformações men- tais da espécie. Diversas perguntas podem ser enunciadas nessas relações. Como pensar a construção social do conhecimento quando essa está mediada pelos processos midiáticos? Em que medida a experiência mental da espécie já incorpora os processos midiáticos como referência de suas constru- ções e inferências? Como os atores em rede vêm participando desses processos? Em que medida as instituições e organizações es- tão se adaptando a esses novos ambientes? Em especial, de que forma a Universidade, a pesquisa e os campos científicos participam desse concerto? Os meios em redes digitais, agenciados pelos sistemas especialistas e in- teligência artificial, se interpõem nesses pro- cessos, de forma a colocar questões incisivas ou secundárias? Como as temporalidades e espacialidades afetam condições de produ- ção e de recepção, incluindo as práticas sociais, na produção social de conhecimento? Que epistemologias e metodologias podem dar conta dessa nova complexidade, emmeio a zonas de indeterminação e incertezas?

SAPIENS MIDIATIZADO CONHECIMENTOS COMUNICACIONAIS NA CONSTITUIÇÃO DA ESPÉCIE

UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA MARIA Reitor Vice-reitor Diretor do CCSH Chefe do Departamento de Ciências da Comunicação Paulo Afonso Burmann Luciano Schuch Mauri Leodir Löbler Rodrigo Stefani Correa Título Sapiens Midiatizado conhecimentos comunicacionais na constituição da espécie Organizadores Jairo Ferreira Ana Paula da Rosa Pedro Gilberto Gomes Antônio Fausto Neto José Luiz Braga Tradução Andrea da Rosa Revisão Luís Marcos Sander Diagramação Casa Leiria Imagem da capa Luisa Schenato Staldoni. Composição a partir de imagens de bancos de uso livre.

FACOS-UFSM Ada Cristina Machado Silveira (UFSM) Eduardo Andres Vizer (UBA) Eugenia Maria M. da Rocha Barrichelo (UFSM) Flavi Ferreira Lisboa Filho (UFSM) Gisela Cramer (UNAL) Maria Ivete Trevisan Fossá (UFSM) Marina Poggi (UNQ) Monica Marona (Udelar) Paulo Cesar Castro (UFRJ) Sonia Rosa Tedeschi (UEL) Suzana Bleil de Souza (UFRGS) Valdir José Morigi (UFRGS) Valentina Ayrolo (UNMDP) Veneza Mayora Ronsini (UFSM) Comissão Editorial Comitê Científico Anne Kaun (Södertörn University) Heike Graf (Södertörn University) Isabel Löfgren (Södertörn University) Michael Forsman (Södertörn University) Mihaela Tudor (Montpellier III) Natália Anselmino (UNR) Stefan Bratosin (Montpellier III) Tiago Quiroga (UNB) Comitê Técnico Editorial Profa. Dra. Sandra Depexe (UFSM) Dda. Camila Hartmann (UFSM) Dr João Damásio (Unisinos) Dr. Dinis Ferreira Cortes (Unisinos) Dda. Luisa Schenato Staldoni (Unisinos) Ddo. Angelo Neckel (Unisinos) Ddo. Mauricio Fanfa (UFSM) Gda. Sofia Roratto (UFSM) Mda. Alexandra Martins Vieira (UFSM) Mdo. Jean Silveira Rossi (UFSM) Mdo. João Vitor da Silva Bitencourt (UFSM) Ms. Guilherme Martins Batista (Unisinos) Mda. Fernanda Lagotreria Carvalho (Unisinos) Mdo. William Martins (Unisinos) Mdo. Igor Malmann (Unisinos) Mda. Jessica Worm (Unisinos) UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA MARIA Comitê Técnico Administrativo Aline Roes Dalmolin (UFSM) Leandro Stevens (UFSM) Liliane Dutra Brignol (UFSM) Sandra Depexe (UFSM)

Jairo Ferreira Ana Paula da Rosa Pedro Gilberto Gomes Antônio Fausto Neto José Luiz Braga (Organizadores) FACOS-UFSM SANTA MARIA-RS 2022 SAPIENS MIDIATIZADO CONHECIMENTOS COMUNICACIONAIS NA CONSTITUIÇÃO DA ESPÉCIE

Sapiens Midiatizado Conhecimentos comunicacionais na constituição da espécie O presente trabalho foi realizado com apoio de: Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - Brasil (CAPES) Código de Financiamento 001 CNPq – Processo n°: 423948/2021-0 Fapergs - processo número 20/2551-0000562-3 Stint - Swedish Foundation for International Cooperation in Research and Higher Education Este trabalho está licenciado com uma Licença Creative Commons Atribuição-NãoComercial-SemDerivações 4.0 Internacional. SEMINÁRIO INTERNACIONAL DE PESQUISAS EM MIDIATIZAÇÃO E PROCESSOS SOCIAIS S241 Sapiens midiatizado [recurso eletrônico] : conhecimentos comunicacionais na constituição da espécie / Jairo Ferreira ... [et al.] (organizadores). – Santa Maria, RS : FACOS-UFSM, 2022. 1 e-book : il. ISBN 978-65-5773-039-3 1. Midiatização 2. Conhecimento 3. Comunicação I. Ferreira, Jairo CDU 316.774 Ficha catalográfica elaborada por Lizandra Veleda Arabidian - CRB-10/1492 Biblioteca Central - UFSM

SUMÁRIO 11 UM SEMINÁRIO DE DESPEDIDAS E MEMÓRIAS Jairo Ferreira 15 MIDIATIZAÇÃO: O QUE SE DIZ E O QUE SE PENSA Lucrécia D’Alessio Ferrara PARTE I MIDIATIZAÇÃO E CONSTRUÇÃO SOCIAL DA REALIDADE 29 A CONSTRUÇÃO COMUNICACIONAL DA REALIDADE Ciro Marcondes 43 SAPIENS... QUI NESCIAT A APRENDIZAGEM SOCIAL E O HOMO SAPIENS MIDIATIZADO José Luiz Braga PARTE II LÓGICAS, ALGORITMOS, PLATAFORMAS E MÉTRICAS 65 EN BUSCA DEL MOVIMIENTO PERDIDO EN LA INVESTIGACIÓN COMUNICACIONAL: MATRICES SOCIOCULTURALES EN UNA INVESTIGACIÓN ENACTIVA EN COMUNICACIÓN (IEC) Sandra Massoni 81 MEDIAÇÕES ALGORÍTMICAS DO CONSUMO: INTERAÇÕES MIDIATIZADAS ENTRE MARCAS E CONSUMIDORES E FORMAS DE ESCRITURAS Eneus Trindade 105 A MENTALIDADE MÉTRICA: A VIDA SOCIAL EM CENÁRIOS MIDIÁTICOS DATIFICADOS Göran Bolin

PARTE III ACONTECIMENTO, CIRCULAÇÃO E CONSUMO 123 ANTES, DURANTE Y DESPUÉS. LA CONSTRUCCIÓN CONTEMPORÁNEA DE LOS ACONTECIMIENTOS Mario Carlón 149 CIRCULAÇÃO E MIDIATIZAÇÃO CAPITALIZADORA NAS SOCIEDADES HIPERMIDIATIZADAS José Luiz Aidar Prado 167 CIRCULAÇÃO DE ROSTOS: DA FÓRMULA MÁGICA À RESISTÊNCIA Ana Paula da Rosa 193 EPIGENÉTICA DOS PROCESSOS MIDIÁTICOS Pedro Gilberto Gomes PARTE IV PRODUÇÃO DE CONHECIMENTO/CRÍTICA, PODER, MIDIATIZAÇÃO SOCIAL 213 SEMIOSE MIDIATIZADA E PODER: INTERFACES PARA PENSAR OS MEIOS ALGORÍTMICOS E PLATAFORMAS Jairo Ferreira 237 A CRIAÇÃO DE UMA MENTALIDADE CRÍTICA. OS ESTUDANTES DE MÍDIA IDEAIS EM TEMPOS DE MIDIATIZAÇÃO PROFUNDA Michael Forsman 263 MIDIATIZAÇÃO, PÓS-VERDADE E PRODUÇÃO DE CONHECIMENTO SOBRE A COVID-19 Igor Sacramento 291 A PANDEMIA ENTRELAÇANDO-SE COM A MIDIATIZAÇÃO Antonio Fausto Neto 317 SOBRE OS AUTORES 327 ÍNDICE REMISSIVO

11 Um seminário de despedidas e memórias Jairo Ferreira 1. Introdução Entre as várias funções de um livro, uma é a de ser me- mória. Este, em especial, é também memória da última confe- rência e debate de Ciro Marcondes Filho. Uma semana depois do evento, ele se despediu. Foi em direção ao cosmo. Ficamos, no decorrer do seminário, impactados. Todos, incluindo aqueles que o conheciam e aqueles que recém haviam conhecido Ciro. O livro é uma variação disso tudo. As gravações no canal YouTube do Midiaticom são mais “vivas” (https://www.youtube.com/@ midiaticom3944). A Mesa I, com Ciro Marcondes e Braga, e a Mesa 2, com a homenagem ao Ciro, são os registros dessa vida que se foi, que nos permitiu a vida que ficou na despedida. Ciro, um colega e delicado amigo, com quem muito aprendemos, em suas formas específicas de sensibilidade e de questionamentos, nos presenteou em sua despedida. Não é pou- co isso. Várias vezes, depois de tudo, refletimos sobre isso. Como entender essa nossa presença e despedida, incluindo ícones do campo de pesquisa em comunicação no Brasil, como Ciro? Onde eles estão guardados, além dos livros nem sempre lembrados? Sem respostas firmes sobre isso, num campo cujas teorias são mais fugazes, destacamos o que é também assim: Ciro é um pes- quisador que fala para nós na mesma forma em que também fala de si. São poucos os que conseguem fazer isso de forma tão intensa como Ciro Marcondes. E quando conseguem fazer isso, ensinam muito.

Jairo Ferreira 12 Somos privilegiados por termos isso. A comunicação, rara, ao ser pensada, diz muito sobre como somos – como tenta- tivas, potencialidades e limitações. A mesa em que Ciro e Braga conversaram é também um resultado de muitos anos de debates, iniciados por iniciati- va do GT de Epistemologia da Comunicação e da revista Ques- tões Transversais, sobre questão que instiga os dois: o que é comunicação? *** Este livro é um dos resultados do IV Seminário In- ternacional de Pesquisas em Midiatização e Processos Sociais, realizado em 2020/2021. O Seminário teve uma programação desenvolvida em dois níveis: Mesas de Debate, com pesquisa- dores convidados (5 mesas, com participação de pesquisado- res da Suécia [2], Argentina [2], e brasileiros [9, incluindo os 5 do PPGCC-Unisinos]). A programação do IV Seminário e sua estrutura podem ser vistas em https://www.midiaticom.org/ seminario-midiatizacao/programacao-2020/. *** Neste IV Seminário, o tema das Mesas foi “SAPIENS MIDIATIZADO: A CONSTRUÇÃO SOCIAL DO CONHECIMENTO ENTRE INTERAÇÕES, MEIOS, CIRCULAÇÃO E MEDIAÇÕES SOCIAIS”C . om sapiens midiatizado queremos nos referir a di- versos processos midiáticos em suas relações com as trans- formações mentais da espécie. Diversas perguntas podem ser enunciadas nessas relações. Como pensar a construção social do conhecimento quando ela está mediada pelos processos midiá- ticos? Em que medida a experiência mental da espécie já incorpora os processos midiáticos como referência de suas constru- ções e inferências? Como os atores em rede vêm participando desses processos? Em que medida as instituições e organizações

Um seminário de despedidas e memórias 13 estão se adaptando a esses novos ambientes? Em especial, de que forma a Universidade, a pesquisa e os campos científicos participam desse concerto? Os meios em redes digitais, agencia- dos pelos sistemas especialistas e inteligência artificial, se interpõem nesses processos, de forma a colocar questões incisivas ou secundárias? Como as temporalidades e espacialidades afetam condições de produção e de recepção, incluindo as práticas sociais, na produção social de conhecimento? Que epistemologias e metodologias podem dar conta dessa nova complexidade, em meio a zonas de indeterminação e incertezas? O livro apresenta isso em quatro partes (não corres- pondentes às Mesas, mas sim privilegiando angulações apresen- tadas): Midiatização e construção social da realidade; Lógicas, algoritmos, plataformas e métricas; Acontecimento, circulação e consumo; Produção de conhecimento/crítica, poder, midiatiza- ção social. A apresentação de Lucrécia Ferrara faz uma reflexão sobre o conjunto e cada um dos capítulos desta edição. *** No total, foram 15 horas de debates nas cinco mesas. Metodologicamente, o Seminário se realiza na articulação de Mesas de Debates com convidados internacionais e Grupos de Trabalho, com a presença de pesquisadores, doutores, douto- randos, mestres e mestrandos. Destacamos que, ainda no âmbito dos processos formativos, mestrandos e doutorandos, mestres e doutores, pós-douto- randos e pós-doutores egressos e integrantes do Grupo de Pesqui- sa organizador participam como pareceristas, em avaliação cega, dos resumos expandidos submetidos por formandos em titulari- dade inferior à sua – sob coordenação dos professores pesquisa- dores do Grupo Midiatização e Processos Sociais. Estes avaliaram (num grupo de mais de três dezenas de pareceristas) cada umdos trabalhos submetidos por colegas com formação emnível inferior, com notas classificatórias, que resultaram nos trabalhos aprovados. Esses foram depois agrupados pela Comissão Organizadora, de forma sucessiva, até chegar aos Grupos de Trabalho do evento.

Jairo Ferreira 14 A média de submissões aos Grupos de Trabalho nos eventos realizados é de 200 resumos ampliados, distribuídos entre professores pesquisadores (em torno de 20%), doutores e doutorandos (cerca de 30%), mestres e mestrandos (idem, 30%) e graduados e graduandos (20%). Mais de 50% dos par- ticipantes são de estados fora do Rio Grande do Sul, e a maioria esmagadora (cerca de 80%) de fora da Unisinos. Entre os seus resultados, além dos processos formati- vos no curso de sua realização, acentuamos a consolidação em uma biblioteca de reflexões, em formato de artigos completos das apresentações em GTs e livros, publicados no formato de e-book (com capítulos produzidos pelos participantes das Mesas de Con- ferências). Os resumos ampliados deste IV Seminário estão disponíveis em https://midiaticom.org/anais/index.php/semina rio-midiatizacao-resumos/issue/archive. Os artigos completos estão disponíveis em https://midiaticom.org/anais/index.php/ seminario-midiatizacao-resumos/issue/archive. No conjunto, os meios do Midiaticom somam quase 80 mil acessos em cinco edi- ções (https://clustrmaps.com/site/19okv). Este livro das Mesas de Debates do IV Seminário, des- ta edição em e-book, está disponibilizado não só no acervo do projeto (https://www.midiaticom.org/e-books/), mas também da FACOS UFSM (https://www.ufsm.br/editoras/facos/publica- coes/). Reiteramos os nossos agradecimentos a Capes, Fapergs, CNPq e Stint (Suécia) pelo auxílio financeiro, essencial para a viabilização desta proposta de conversação a partir de pesqui- sas, teóricas e empíricas, realizadas por seus participantes. Jairo Ferreira Pelos organizadores

15 Midiatização: o que se diz e o que se pensa Lucrécia D’Alessio Ferrara1 1. Muitos são os méritos do Seminário Internacional em Midiatização e Processos Sociais Entre aqueles méritos, o menor não foi a edição da sua IV reunião realizada emnovembro e dezembro de 2020 e janeiro de 2021. Dividido em sessões temáticas de conferências, contou com a participação de nomes reconhecidos no cenário nacional e internacional que apresentaram resultados de investigações sobre constantes temas de interesse apresentados, neste livro, em quatro partes: Midiatização e construção social da realidade; Lógicas, algoritmos, plataformas e métricas; Acontecimento, cir- culação e consumo; Produção de conhecimento/crítica, poder, midiatização social. No desenvolvimento desses temas, apreendemos que o conceito de midiatização está definido e, nesse sentido, seria questão ultrapassada. Entretanto, desde o primeiro seminário em 2016, pergunta-se: o que é midiatização e o que dela se pen- sa? Portanto, não é questão ultrapassada, mas é atualíssima, deve ser debatida e, sobretudo, apresentada na interface de outras questões que lhe são correlatas ou consequências de seus múltiplos eixos de análise. 1 PPG em Comunicação e Semiótica/PUCSP. ORCID: https://orcid.org/0000- 0002-4727-9817. LATTES: http://lattes.cnpq.br/1606647058708790. E-MAIL: lucreciadalessioferrara@gmail.com.

Lucrécia D’Alessio Ferrara 16 Nessas interfaces, observa-se que a midiatização constitui elemento central dos debates em comunicação e constitui matriz de alguns tensionamentos epistemológicos. Nessa tensão, observa-se que o conceito de midiatização pode ir além do foco tecnológico que parece ser central nos debates rotineiros em torno da comunicação contemporânea; ao contrário, é necessá- rio saber como midiatização e meios técnicos se relacionam ou se conectam. Como consequência, esta apresentação tem como objetivo alinhar a relação entre os temas em debate e, sobretu- do, apresentar as respectivas contribuições para o desenvolvimento de uma possível epistemologia da comunicação, que con- sidere a midiatização como um dos seus eixos centrais, ao lado dos já consagrados como produção de conhecimento e processo social. Entre essas contribuições, é preciso ressaltar que os te- mas foram propostos na ótica epistemológica da comunicação e, portanto, é nessa dimensão que essa apresentação deverá considerá-los, ou seja, trata-se de verificar como contribuem para a produção de conhecimento na área da comunicação, salientan- do, porém, as contribuições que decorrem das consequências da dimensão fenomênica dos processos sociais. Analisando o eixo das conferências apresentadas, ob- serva-se que elas podem ser entendidas no arco de alguns interesses centrais: a aprendizagem, a produção de conhecimento e a circulação enquanto sedimentações de uma forma de pensar, além das respectivas consequências que decorrem das atualidades de dispositivos tecnológicos fixos e móveis. 2. Midiatização, conhecimento, inferências Desde o alvorecer da civilização comandada pelo Homo sapiens, o conhecimento parece ser liderado pela razão e en- contra, no viés da aprendizagem, seu vetor principal e irrecu- sável; nesse sentido, entende-se que conhecimento e aprendizagem são elementos parceiros e mutuamente consequentes. Ora, os debates apresentados no IV Seminário de Midiatização e Processos Sociais assumem, como eixo de reflexão, a produção do conhecimento, sua circulação enquanto midiatização e, finalmente, o papel da Universidade naquela produção. Como se

Midiatização: o que se diz e o que se pensa 17 trata de um seminário acadêmico, parece natural que o conhecimento seja, primeiramente, decodificado como aprendizagem; nesse sentido, a midiatização se confundiria com deslocamentos do conhecimento que, midiaticamente, circulariam dando razão a uma tendência transmissiva, cara aos estudos da Teoria da Comunicação desde suas primeiras e conhecidas incursões aca- dêmicas. Comunicação enquanto transmissão constituiria seu papel fundamental que, enquanto conhecimento, zelaria pela aprendizagem e, sobretudo, pela sua propagação, sempre alerta às novidades, mas, sobretudo, à sustentação do conhecimento como tradição e repetição, a fim de manter os principais víncu- los sociais sedimentados. A dinâmica social estaria protegida, enquanto fosse possível comunicar valores tradicionais. Nesse sentido, midiatização poderia ser entendida como circulação e seria convocada como papel central daquela dinâmica social. Nesse processo, o conhecimento seria aprendizagem do estabelecido e apresentado, de modo irrevogável, como conhecimento e privilé E g n io q . uanto processo, a sociedade se altera e, sobretudo, se adapta aos embates econômicos, culturais e tecnológicos que a atravessam. Nesse processo, a comunicação surge como ele- mento construtor da realidade social e seus processos de transformação. Secundando Darwin, aquele processo arrasta consigo todas as estratégias que, desde o Homo habilis, apresentaram alternativas para produzir e desenvolver aquela mudança, a fim de encontrar caminhos que levaram aquele homem a transfor- mar-se no Homo sapiens. Porém, não basta constatar que a comunicação constrói a realidade social. É indispensável saber como constrói e em que medida essa construção supõe constante perseverança. Nesse compasso, a comunicação deixa evidentes seus processos de comunicabilidade disponíveis à observação, base adequada a uma ciência que, aderente ao seu fazer ou acontecer, elege o domínio empírico como instância inicial e sugestiva para a produção de inferências teórico-interpretativas (Ciro Marcondes). Traduzido pela comunicabilidade, esse processo atinge a produção de conhecimento e sua passiva aprendizagem reconstitui-se como invenção; ainda que tentativa lenta, porém constante (José Luiz Braga). Passa-se da aprendizagem para a

Lucrécia D’Alessio Ferrara 18 invenção, que supõe descoberta e risco de errar ao propor tentativas hipotéticas e, sobretudo, inferências que se direcionam para possíveis descobertas, elaboradas e em germe nas anterio- res tentativas. O panorama dessas descobertas é alimentado por perguntas, e, entre elas, destaca-se a interrogação que acompa- nhou toda a produção científica de Ciro Marcondes: que homem está sendo desenhado por essa sociedade midiatizada? A procura da resposta à pergunta levou aquele investigador às experi- mentações empíricas desenvolvidas com estudantes. Assinala- -se o prognóstico de investigação de base heurística, que viria a ser considerada matriz da epistemologia da comunicação. A aprendizagem altera seu patamar: transforma per- guntas em inferências tendentes a solucionar problemas que, diariamente, se apresentam ao Homo sapiens, em todas as suas edições. Desenvolvem-se os processos sociais e a invenção cons- titui elemento que, com o apoio tecnológico, pode reinventar-se, embora, empiricamente, continue a utilizar a experimentação. Nesse sentido, arrisca-se, entre todas as dúvidas do que se diz e como se define midiatização, insinuar que ela não é senão um experimento arriscado. Nesse sentido, midiatização é um ex- perimento social, através do qual se experiencia a capacidade de invenção. Enquanto senhor dos meios técnicos, o homem é capaz de os inventar, ao mesmo tempo que os critica ou a eles se adapta. Nesse sentido, midiatização é exercício recente que propõe, para a epistemologia da comunicação, um viés que contempla o próprio modo como a tecnologia e os meios propõem o desenvolvimento do conhecimento em comunicação. Midiatiza- ção é uma experiência de aprendizagem e como tal deve ser estudada, porém seu maior desafio concentra-se na capacidade de inventar. Amidiatização faz com que a comunicação se evidencie como comunicabilidade que estabelece, com a produção social, dupla implicação lógica e se manifesta como coadjuvante da sua própria construção (Ciro Marcondes). 3. Midiatização como método para inventar A palavra midiatização contém a palavra mídia, o que impõe considerar que as tecnologias dos meios massivos ana-

Midiatização: o que se diz e o que se pensa 19 lógicos, eletrônicos e digitais devem ser consideradas, quando tentamos entender aqueles meios como instrumentos de um método para inventar. Enquanto tecnologia, esse método é tau- tológico e parece não admitir experimentações; ao contrário e cada vez mais, supõe certezas que atuam como práticas auto- máticas e produzem efeitos esperados: fala-se de códigos e re- des confiáveis, tendo em vista a mutação, mas a transmissão ou reconfiguração daqueles códigos, através de algoritmos e pla- taformas. Se entendermos que mediatização é uma experiência voltada para o inventar, é necessário entender que a invenção é risco que deve contar com as imprevisibilidades que limitam todas as certezas e fazem da experiência uma aventura, feita de tentativas produzidas na transversalidade do conhecimento estabelecido (José Luiz Braga). Porém, se a entendermos não como tentativa, mas como rotina liderada por códigos ou modulações tecnológicas, podemos transformá-la em hábito que se reproduz de modo previsível e autoexplicativo, como um algoritmo. Entretanto, surge um descompasso daquele hábito. Se aplicada aos processos sociais, amidiatização é tão aberta e complexa quanto o são as sociedades e exige ousar trabalhar com sistemas em fluxo de mudança, mais voltados para experiências de invenção do que para certezas de aprendizagens aplicativas. Uma revolução que transforma a produção de conhecimento em um fluir incerto e imprevisto, que tudo admite como método in- ferencial, mas nada promete, embora crie teorias intermediárias para a comunicação (José Luiz Braga). Uma revolução nos meios de aprender que impõe a necessidade de rever, no seu fluxo de transformações, todas as previsibilidades aplicativas, pois podem insinuar diferenças que, não raro, são interpretadas como possíveis acidentes de percurso e acabam por ser, portanto, ba- nalizadas (Sandra Massoni, Eneus Trindade, Göran Bolin). Nesse caminho, surgem imprevistos fenomênicos, como o acontecimento. Mario Carlón estuda o acontecimento na sua evidência cronológica e, portanto, interpretado como evento histórico, previsto em causas e consequências. Observa-se, en- tretanto, que, ao contrário da dinâmica do evento, o aconteci- mento é capaz de atrair olhares para o inusitado ou espetacular midiático; ou seja, acontecimento não se confunde com o even- to histórico e não se deixa permear por causas e consequências

Lucrécia D’Alessio Ferrara 20 passíveis de demarcação cronológica como antes, durante e depois. Ao contrário, o acontecimento não admite cronologias, porque é indeterminado nas suas causas e imprevisível nas suas consequências; portanto, o acontecimento é tão adequado à midiatização quanto se afasta do espetacular evento previsível nas suas consequências e, sobretudo, nas suas causas. Observa-se que aquela midiatização que surge como experiência de viver entre meios técnicos exige um conhecimento capaz de adaptar- -se à incerteza do indeterminado, sem tempo ou lugar fixos. Porém e liderado pela midiatização, o exercício social exige a capacidade de resolver problemas, embora nada apre- sente como método seguro para prefigurá-la nos seus possíveis desenvolvimentos. Nesse sentido, uma epistemologia da comunicação atenta ao exercício da mediatização não confunde co- municação com programas de ação, mesmo que sejam éticos e desejáveis enquanto performances morais ou políticas, claramente demarcadas. A midiatização dessas performances vai muito além das atuações já consagradas pela circulação da co- municação midiática, como aquela voltada para o consumo e liderada por estratégias persuasivas publicitárias, apoiadas em preferências, desejos ou pulsões psicológicas, previstas e expli- cadas pela psicanálise (José Luiz Aidar), ou pela noticiabilidade, mais ou menos favorável ao impulso, que faz da notícia um jogo de interesses em divulgação e, em alguns casos, em circulação. Mais do que nunca, a midiatização exige a crítica de táticas ou estratégias programadas ou explicativas do próprio conheci- mento (Ana Paula da Rosa; Pedro Gilberto Gomes). Ou seja, enquanto possível epistemologia da comunicação, a midiatização se apresenta como crítica da própria comuni- cologia que se apoia em programas teóricos ou políticos, ou seja, a midiatização de processos sociais encontra-se na imponderabilidade das suas emergências e a nada obedece; porém, aderen- te à lógica dos meios, a midiatização observa a circulação e essa característica é responsável pela constituição da opinião pública e natureza do consumo, ambas lideradas pela transmissão, mais como propagação de interesses do que como desenvolvimento de modos de pensar. A circulação como propagação é prevista pela lógica dos meios, mas essa lógica se altera na dinâmica da própria opinião pública e, portanto, não pode ser determinada

Midiatização: o que se diz e o que se pensa 21 pelo modo como circula ou pelas suas causas e consequências. Através da circulação como capítulo da lógica dos meios, parece estar programada a repetição ou a reiteração que consagra pro- gramas midiáticos, mas a midiatização, enquanto circulação da própria experiência, pode surgir sempre nova e imprevista. Portanto, a midiatização não se refere ao mundo tec- nológico disponível à circulação transmissiva; ao contrário, vai além e, apesar dos meios, instaura novos e outros processos interacionais que reinventam o mundo e as relações humanas, tornando evidente que não é consequência da circulação da comunicação transmissiva. Ao contrário, à medida que se mediati- za, a comunicação se altera, transforma-se e se faz nova, embora circulante. Ou seja, a midiatização enquanto consequência dos meios comunicativos vai além deles e da própria comunicação. Nesse percurso, observam-se interfaces com teorias que privile- giam procedimentos lógico-dedutivos configurados em distintas áreas do conhecimento. Essas teorias são possivelmente totali- zantes e aqueles procedimentos tendem a explicar ou prever os processos sociais e, como consequência, o próprio alcance da midiatização. Para tanto, transformam processos em fluxo, em hábitos de ação, sentir e pensar. Em suas interfaces, o conheci- mento é desafiado, pois, antes que hábito, a midiatização é circulante e estrutura-se, na medida em que é estruturante e exi- ge que a consideremos nas semioses dos seus processos (Jairo Ferreira O ). u seja, longe de constituir uma estratégia metodológica, a epistemologia da midiatização deve estar atenta não ao flu- xo dos meios técnicos, mas ao modo como a técnica se dispersa e invade o cotidiano social, atravessando corpos que se deixam infiltrar por próteses cirúrgicas, mas também aprendem a de- fender-se, fazendo com que a tecnologia e suas estratégias pas- sem a ser vetores críticos de uma ação que responde ao desafio da técnica. Essa ação prevê a possibilidade de uso da técnica e seu domínio, mas, como consequência, a midiatização está mais voltada ao desenvolvimento do uso da técnica como invenção de outros modos de vida do que repetição de protocolos estabeleci- dos como rotinas de uso. Com a midiatização, somos convidados a conviver com a técnica tirando, dessa convivência, a possibilidade de aprender a conviver com ela e apesar dela: cria-se nova

Lucrécia D’Alessio Ferrara 22 rotina de outro cotidiano em tempo real, embora topicamente remoto. Desse modo, a midiatização não está voltada para as conhecidas táticas de circulação do previsto, mas e ao contrá- rio, se propõe a nos sugerir como podemos viver com a técnica, apesar dela e, certamente, às expensas dela. Nesse sentido, a mi- diatização não se propõe como crítica da interessada circulação dos meios técnicos e suas estratégias persuasivas, mas constitui inferência que decorre da possibilidade de aprender ou inven- tar, com a técnica, outra sobrevivência que implica e requer a técnica. Essa é a dimensão do contemporâneo que nos é apresentada pela midiatização, porém como uma possibilidade em fluxo, que não podemos prever e muito menos programar suas consequências. Se a mediação consiste na comunicação de molde trans- missivo entre um emissor e um receptor que, enquanto transmi- te, modela aquilo que o receptor deve pensar e como deve agir, a midiatização, ao contrário, não se impõe objetivos a transmitir, mas refere-se a um modo de vida que, atravessado pelos meios técnicos de múltiplas características, nada transmite, salvo a experiência de sermos seres comunicantes e interativos. Através da midiatização, somos capazes de perceber o mundo enquanto nos possibilita, em tempo real, a experiência interacional de estar em todos os lugares e em todos os tempos. A midiatização nos permite estar conscientes de que somos cidadãos do mundo que habitamos e que nos habita. A sutileza desse conceito está em nos levar a perceber que a tecnicidade nos exige experimen- tar novas formas de pensar e agir, opondo-se, portanto, a qual- quer atividade mimética que pode nos impedir de atuar criativamente no lugar e no modo como vivemos ou queremos viver. Certamente, essa face antimimética da midiatização permanece escondida, até que admitamos que ela nos convida à comunicação, sem nos impor como comunicar (Pedro Gilberto Gomes, Igor Sacramento). 4. A midiatização na Universidade Enquanto produtora de conhecimento, a midiatização apresenta-se como desafio para a própria Universidade e seu

Midiatização: o que se diz e o que se pensa 23 exercício social, sobretudo quando é desafiada a responder a contingências fenomênicas imprevistas e imprecisas, como ocorre, por exemplo, quando a sociedade local e mundial en- frenta obstáculos como a realidade pandêmica vivida atualmente (Fausto Netto). Embora a rotina da aprendizagem constitua chave-mes- tra da vida acadêmica no seu exercício de habitualidades, é necessário arriscar a tentativa de previsão insegura do seu possí- vel exercício. Insegura porque, presa à estratégia de repetição que lhe conferiu papel de liderança e poder social, a Universidade se apresenta como estrutura presa ao imóvel e infensa ao movimento. Nesse sentido, entende-se que a midiatização nada ofereça à Universidade, pois lhe apresenta patamares de atuação que sugerem caminhos transversais aos habituais, porque vão na contracorrente de programas, currículos e atividades previstas e planejadas, ainda que travestidas pela atualidade tecnológica. Entendendo que midiatização é exercício sem progra- mas, é possível e justa a pergunta: que Universidade emerge do cotidiano atingido pela pandemia, entendida como possível di- mensão midiatizada da realidade social? (Fausto Netto). A res- posta parece impor-se: a Universidade só estará preparada para responder a desafios análogos àquele que a pandemia lhe apre- senta se for capaz de revisões dos seus hábitos e certezas, ou seja, para midiatizar-se, exige-se que a Universidade seja capaz de rever-se nas suas práticas e projetos. Essas revisões impõem a necessária observação empí- rica atenta às modulações fenomênicas que, imprevistas, exigem antes o risco de propor compreender do que as seguras expli- cações. Sabe-se que as demonstrações do poder universitário emanam do conforto e segurança daqueles que detêm os acadêmicos lugares de fala, ecos de certezas dos que sabem e se colo- cam contra a dúvida, sempre arriscada, daqueles que procuram saber e, como consequência, perguntam (Igor Sacramento). Para que a Universidade se encontre em condições de responder às perguntas que lhe são propostas pelo contempo- râneo, será necessário entender que a comunicologia da midiatização está sempre em processo e, portanto, estará mais apta a adaptar-se ao novo que exige invenção do que ao usufruto de

Lucrécia D’Alessio Ferrara 24 uma aprendizagem do que se conserva por tradição ou conforto. Sem rápidos e imediatos empirismos, a Universidade precisa midiatizar-se para aprender a viver entre mídias e, sobretudo, ser capaz de descobrir-se enquanto mídia social não corriqueira, mas crítica do seu fazer e das suas possibilidades de atuar no território do conhecimento em midiatização. 5. Midiatização: do pensamento à consciência crítica Na complexidade desse território sem caminhos provados, não há letramento estabelecido ou desejável, porque a midiatização se apresenta sempre como se nova fosse (Michael Forsman). Nessa novidade tomada como recorrência do já vivido, embora talvez não apreendido, destaca-se um letramento tecnológico que, enquanto estrutura de poder, se relaciona a um pacote de regras transmissíveis, prontas a serem repassadas em uma aprendizagem tão mimética quanto desinteressante para aqueles que, vivendo um cotidiano midiático, já não são ingê- nuos, mas exigentes, enquanto esperam outra atuação diferente do simples letramento e atentos às imprevisíveis solicitações das próprias novidades dos meios e respectivas tecnologias ou dispositivos. Nesse sentido, é necessário observar que a midiatização promove a abertura para considerar outros patamares de aná- lise e, entre eles, a comunicação que, embora comum a todas as espécies vivas orgânicas e inorgânicas, encontra, na filogênese antropológica, outra matriz cognitiva e perceptiva que estabe- lece íntimas relações entre sensibilidade, mente, corpo, espaço e linguagem, inaugurando uma matriz cognitiva não superior, porém mais complexa do que a filogênese comum a todos os se- res vivos. Sem antropocentrismo, mas atentos à realidade que a midiatização nos sugere viver, percebe-se a urgente necessidade de desenvolver um pensamento crítico sobre o contemporâneo. Embora uma exigência do nosso tempo/lugar históricos, impõe-se perceber que a crítica só se estabelece como pensa- mento a partir de uma consciência capaz de indagar o contexto vivido e perceber, sob as demandas da prática de todos os dias,

Midiatização: o que se diz e o que se pensa 25 qual a razão maior das ações, deliberações ou deveres que nos são exigidos ou possibilidades de vida e atuações em relação às quais temos direitos. A consciência acompanha o pensamento crítico, mas o ultrapassa, porque exige a avaliação do contexto de cada um e a ação condizente e adequada a cada momento. Paulo Freire propôs e pregou o desenvolvimento de um pensamento crítico através da consciência do cotidiano de cada um, da infância à maturidade, da criança à terceiridade. Esse é o programa da revolução proposta por Paulo Freire para concretizar o ideal de uma democracia do futuro sem letramentos ou modelos, porque a consciência crítica se propõe como nova a cada dia de distintos contextos: uma cultura que se exige sem modelos, embora com ideais que não são idealizados, mas trabalhados a cada dia e renovados em cada consciência capaz de crítica. Cabe a esse outro modo de ser/estar em consciência entender o letramento midiático não como aprendizagem de uma com- petência tecnológica, mas como exigente observação que não se nega ao desafio de descobrir aquilo que ainda pode não ter sido apresentado, mas já se propõe como outro convite de vida (Michael Forsman). 6. Apresentar para midiatizar Nessa apresentação, não tivemos outro objetivo senão tornar explícitos os debates sugeridos pelos trabalhos que, às voltas com a midiatização e suas provisórias definições, procu- raram revisitar conceitos e tendências, consagradas em distintas teorias da comunicação. Apresentando certezas e definições, aqueles conceitos não alcançam apreender as insinuações pro- postas pelo viver entre interações, enquanto manifestações midiatizadas que recusam tecer definitivas midialogias. Essa recu- sa impõe aos pesquisadores da midiatização e sobretudo àque- les reunidos nos Seminários de Midiatização e Processos Sociais desenvolver longo exercício que prevê observar, empiricamente, processos de midiatização, a fim de ser possível inventar outro modo de estudar a comunicação, distante da linearidade teórico-explicativa que atinge programas e roteiros midiáticos.

PARTE I MIDIATIZAÇÃO E CONSTRUÇÃO SOCIAL DA REALIDADE

29 A construção comunicacional da realidade The communicational construction of reality Ciro Marcondes In memoriam1 Resumo: O texto apresenta a última conferência e debates pú- blicos de Ciro Marcondes Filho, antes de falecer. Na apresen- tação, Ciro aborda a construção comunicacional da realidade, situando questões que considera centrais conforme momentos da história dos meios em relação com a da espécie (o diálogo e a pintura rupestre; a escrita; as tecnologias de reprodução; os meios massivos). A partir dessas questões, situa a problemática central: “Que novo homem está sendo engendrado por esta so- ciedade e que marca este momento decisivo da nossa cultura?”. No debate, aqui reproduzido com José Luiz Braga, Aidar Prado e Isabel Löfgren, atualiza essas questões e as cruza com sua pers- pectiva de nova teoria da comunicação. Palavras-chave: Construção da realidade. Midiatização. Comuni- cação. Nova teoria. Abstract: The text presents Ciro Marcondes Filho’s last confer- ence and public debates before his death. In the presentation, Ciro addresses the communicational construction of reality, raising questions that he considers central according to mo- ments in the history of the media concerning the species (dia1 Ciro Marcondes faleceu na semana posterior ao debate realizado após esta con- ferência. Conservamos o texto original de sua apresentação, alterando-o somen- te em busca de ajustes ao texto escrito. Na sequência, apresentamos o debate realizado com José Luiz Braga e outros pesquisadores presentes.

Ciro Marcondes 30 logue and cave painting; writing; technologies of reproduction; mass media). Starting from these questions, he situates the cen- tral problem: What kind of newman is being engendered by this society and marks this decisive moment in our culture? In the debate with José Luiz Braga, Aidar Prado, and Isabel Löfgren, reproduced here, he updates these questions and crosses them with his perspective of a new theory of communication. Keywords: Construction of reality. Mediatization. Communica- tion. New Theory. 1. Introdução O tema desta comunicação é a construção comunicacional da realidade e como a comunicação interferiu nas formas de construção da realidade. Esse tema vai nos acompanhar até o final desta exposição. A comunicação, a organização e a construção social da comunicabilidade são um tema que envolve tanto a comunica- ção quanto outros aspectos da sociedade civil, aspectos esses que são demarcados por uma grande divisão entre as próprias instituições, que terão como atividade colaborar na construção da realidade. A realidade não é um fato dado, não é sempre um fato onipresente. Ao contrário, a realidade é uma instância conti- nuamente mutante e que exige continuamente esse ingresso de elementos da comunicabilidade para sua própria organização. Claro que nem sempre a comunicabilidade tem a fun- ção principal, central, nela. A comunicabilidade é vista, é tida, é incluída como um coadjuvante, pelo menos nos primeiros tempos da história da humanidade. Eu diria que depois dessa fase primária, elementar, do diálogo e da pintura rupestre, é que marcaram uma certa outra teocracia. Nós tivemos, com a ascensão da Igreja como poder instituinte dessa mesma sociedade, e da própria cultura, uma mudança significativa neste sentido. A Igreja foi responsável por esse processo durante cerca de mil anos, em que a escrita e a ordem falada foram substituídas, prin- cipalmente a ordem falada, foi substituída pela leitura das Escri- turas. A leitura das Escrituras significou o quê? Significou agora

A construção comunicacional da realidade 31 que a sociedade precisaria aprender a decifrar, a interpretar, a ler os textos sagrados, porque eram esses que, na época, contro- lavam ou assumiam a prioridade social das próprias sociedades. Então, nós temos aqui uma sociedade em que o valor básico era como as coisas eram traduzidas para as pessoas, como os tex- tos sagrados eram traduzidos para as pessoas, e a função agora, então, dos tradutores, dos hermeneutas, daqueles que tinham o trabalho de reproduzir os textos, foi e tornou-se o aspecto principal dessa mesma sociedade. Eu diria que se existe uma pergunta principal que se fazia nesta época, era: o que significa isso? Sendo que isso remete, claro, naturalmente, à questão da própria tradução ou na própria legibilidade dos textos de época. Isso foi mudando, e no século XVI tivemos a grande virada, que foi a proposição cartesiana de divisão do ser em duas dimensões: um ser pensante e um ser extenso. Isso significava então toda uma revolução do pensamento que agora caminharia por dois lados que de alguma maneira se oporiam nesse proces- so como um todo. Mas, ao mesmo tempo, é uma sociedade que cria não apenas essa divisão, mas também a revolução tecnológica, uma revolução política e uma evolução social. Tecnológi- ca porque significou a introdução da tipografia, que mudou um pouco a maneira como as pessoas passam a se relacionar com seus mundos. A tipografia veio trazer a reprodução dos livros e do material de leitura como um todo, não apenas religioso, mas também político, cultural, ideológico, enfim. E iria formatar também as mentes à medida que ela iria, digamos assim, reestrutu- rar a maneira como as pessoas olhavam o mundo e os próprios textos. Significa, com isso, que aí haveria uma mudança básica na própria sociedade. O que temos nesse momento, depois dessa passagem, é uma outra transformação, que introduziu nesse momento uma nova sensibilidade. Essa nova sensibilidade foi caracterizada por Espinoza, por Leibniz, e marcou em seu tempo e provocou também uma ruptura com o pensamento cartesiano da época, porque introduzia também conceitos que estavam fora do mo- delo de pensamento cartesiano básico. Mas a mudança princi- pal não foi aí, a mudança principal ocorreu com a presença do filósofo Nietzsche, que trouxe para essas sociedades não apenas uma crítica à própria sociedade, aquilo que ele chamava de de-

Ciro Marcondes 32 cadência, mas também, além, é claro, da crítica à metafísica, ao historicismo e ao cristianismo, aportando conceitos novos, como o conceito de energia, o conceito de cor e o conceito de força. O próprio conceito de espírito é de certa maneira reintroduzido aqui por Nietzsche, que de alguma maneira recoloca a questão grega novamente em pauta. E essa virada que marcou a sensibilidade foi uma virada que preparou também de certa maneira o terreno para as revoluções que viriam. Essas revoluções foram até anteriores à própria presença do filósofo e significaram: o aparecimento do povo como figura política proeminente; a esfera pública; o jor- nalismo e também as máquinas de registro e de reprodução. Es- sas máquinas reproduziam, na Segunda Revolução Industrial, as imagens e os sons em movimento através da câmera fotográfica, do fonógrafo, do cinema... É claro que isso não iria deixar a so- ciedade como antes. Fazem com que a sensibilidade se transformasse. E a nova pergunta que se faz nessa época era exatamente que nova sensibilidade está surgindo aqui nesse novo contexto. Mas isso não termina aqui. Nós temos também, neste momento, o desdobramento disso que aconteceu no século XIX, que foi o aparecimento, no século XX, dos grandes mass media, que se tornaram proeminentes na condução política e na estruturação social, na maneira como os homens passaram a encarar a sua própria sociedade. Nessa época, no século XX, surgem as escolas de Comunicação, que nem sempre conseguiram muito bem dar conta da sua importância e do seu objeto histórico. Eu diria que a comunicação foi o fator mais importante do século XX, mas também no século XXI, quando ela passa também a assumir o papel principal na sociedade, e esse fato fez com que de fato se tornasse decisiva nessa construção da realidade a partir dos meios de comunicação. 2. A época atual A nossa época não deixaria de ser a principal, a que mais nos interessa nesse momento, da comunicação, exatamen- te por ser o momento em que vivemos. É o momento em que hoje nós dedicamos a maior preocupação, o maior interesse em

A construção comunicacional da realidade 33 discutir. Porque a comunicação, que, digamos assim, teria um papel secundário nos seus primórdios, e depois ela passou a ser importante a partir da tipografia, e de algumas transformações humanas que transformaram a sensibilidade em várias épocas diferenciadas, hoje ela se torna, ou, mais importante, digamos assim, o equipamento que nos combina, que nos organiza nes- sa vida social e, de certa forma, nos aprisiona. Por quê? Nós sabemos que os grandes meios de comunicação foram por muito tempo bancados, conduzidos, controlados pelo grande capital. E o grande capital fazia não apenas jornais, revistas, mas também investia na área cultural, no glamour, na forma como foram se desenvolvendo os meios de comunicação. Não só agora, os meios impressos, jornais, revistas, mas o rádio, que aparece também nessa época, em 1918, e os demais aparelhos vão surgindo a partir dos anos 1920, especialmente a televisão e o cinema, que ocuparam também um espaço muito importante no imaginário social. Isso não é sem resultados, sem efeitos, sem impactos para a sociedade. Ao contrário, isto fez com que essas sociedades adquirissem uma nova dimensão neste momento, aquela dimensão que era, por assim dizer, passi- va, na comunicação, passa a ser totalmente ativa. Característica básica desta época é que o homem possa deslocar-se do centro das atenções para uma periferia, graças aos aparelhos de repro- dução que tomam seu lugar, que ocupam o seu lugar. Mais ainda: essas sociedades são marcadas pela ideia da imortalidade. Dentro dos meios de registro, as pessoas vão gravar suas vozes, seus movimentos, e se tornará, portanto, imortal. E poderão reapare- cer como figuras proeminentes da vida social. Além disso, isso é também uma nova realidade, que é uma realidade mundial, mar- cada pela existência, pela produção de um novo plano, de um novo nível de sociabilidade, que é o plano abstrato, imaginário, e de produção de ideias, que será o novo plano de sociabilidades. O que nós temos, agora, é o processo em que o grande capital (que banca tudo isso, que foi responsável pelo aparecimento das grandes máquinas, as máquinas de reprodução da Se- gunda Revolução Industrial, esses grandes aparelhos) mobiliza esses meios e os utiliza de forma ampliada, exatamente pela interferência das novas tecnologias e dos equipamentos técnicos que os homens vão utilizar. Então nós temos aí que a grande em-

Ciro Marcondes 34 presa comunicacional vai se tornar o pivô da grande mudança comunicacional que nós temos. E, do ponto de vista do usuário, esse novo aprisionamento da sensibilidade vai marcar uma ter- ceira pergunta do nosso quadro de questões. A nossa terceira pergunta é: que novo homem está surgindo com isso tudo? Uma pergunta radical, porque parece que nós não nos identificamos mais, nós não conseguimos mais saber a nossa atribuição, em função daquilo que falamos anteriormente, do momento de se mover pela periferia, de imortalidade, de ser substituída pelos aparelhos e da criação dessa nova estrutura que seria a nova realidade mundial. Com todo esse conjunto de perguntas, nós formulamos uma terceira pergunta para a qual não sabemos a resposta. Que novo homem está sendo engendrado por esta sociedade e que marca este momento decisivo da nossa cultura? Não sabemos, e essa é a pergunta que nos incomoda, que nos chama a atenção e que nos traz aqui para um debate que é, sem dúvida, um debate decisivo e que busca propor algumas questões principais para nós discutirmos em nossa era. 3. Debate Bom dia, Braga, bom dia, Jairo, bom dia a todos. Eu não tinha consciência que o Jairo operava também com a agonísti- ca. Isso vai me ajudar muito, principalmente porque eu apren- do muito toda vez que dialogo com o Jairo, com o Braga. Com o Braga, principalmente. Bom, e de fato, algo acontece de muito interessante. A maneira como ele expôs o texto dele cruza de uma forma muito interessante com o meu texto. Porque ele e eu trabalhamos com esse cruzamento de níveis desde a Antigui- dade até hoje. Então em vários pontos a nossa fala vai tratar do mesmo tema. Ele e eu partimos de um diferencial que é o começo da história da comunicação. Partindo naturalmente da pintura rupestre, que, na minha opinião, dá início ao processo comunicacional. Mas não só isso. Também marca o início de um tipo de tentativa humana de fazer com que o outro participe de uma ideia que é minha e que eu de alguma forma exponho e com-

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